segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

(Ir) responsabilidade cidadã

George Grosz



Quando a crise se manifestou em toda a sua exuberância terá parecido a alguns que o mundo em que sempre tinham acreditado se desmoronava de um sopro. Chegaram a ser ouvidas com atenção solenes vozes que defendiam que estava na hora de arrepiar caminho. Era necessário, diziam, que reavaliássemos as nossas necessidades e aprendêssemos a viver de forma mais contida. Isto tinha um significado mais profundo do que à partida pode parecer. A economia dos países desenvolvidos e, ainda mais amplamente, o nosso modo de vida, assentou, sobretudo desde o pós-guerra, num modelo muito claro e fácil de entender: as necessidades são ilimitadas por definição e os recursos, que, idealmente, devem ser sempre crescentes, servem para satisfazer essas necessidades constantemente inventadas e descobertas. O princípio da obsolescência, técnica e simbólica, dos bens de consumo, tem governado esta máquina bem oleada criada pelo sistema capitalista. Para o seu funcionamento não basta, de facto, querermos sempre adquirir novos produtos, é importante, também, que os bens que já possuímos deixem de servir, seja porque se estragaram seja porque passaram de moda. Isto funcionou durante décadas, ainda que algumas crises pontuais tenham, por vezes, ameaçado o modelo.

Desde há muito que variada gente anda à espera da tal crise, aquela que não deixará pedra sobre pedra. A aparente virulência da crise que vivemos levou algumas almas a acreditar que seria este o momento há tanto aguardado e foram essas as vozes que se fizeram ouvir e que chegaram a ser escutadas. Foi sol de pouca dura. Os liberais depressa recuperam do pasmo e atordoamento em que tinham caído: o modelo, que tantas alegrias lhes tinha proporcionado, possuía, afinal, todas as condições para se regenerar. Habituados a certezas, depressa descobriram que só eles eram capazes de encontrar as boas soluções. Foram-se, por isso, chegando à boca de cena e é lá, na linha da frente, que os encontramos, sérios e reservados, como se o mundo inteiro lhes devesse os milhões que perderam não se sabe como.

Do que não há dúvida é que nos fora nacionais e internacionais é dentro do modelo que se discutem as soluções. Uma das descobertas que fizeram é bem curiosa: em vez de se discutir se estamos a consumir de uma forma absurda e excessiva deve é promover-se o consumo! E como diabo se faz isso se a malta não tem dinheiro? Fácil: o governo financia! O que importa é injectar dinheiro no sistema para que o possamos gastar, de preferência do modo mais irresponsável possível. Basta que o governo diminua os impostos ou até que entregue uma espécie de cheque às famílias. Nada de novo noutras paragens, se bem que a malta por cá chegue a estranhar essa ameaça de generosidade. Todavia, os atentos e perspicazes liberais já detectaram neste plano um problema que os aflige. É que os cidadãos, irresponsáveis como o caraças, são bem capazes de desvirtuar a medida: em vez de se irem meter no Shopping mais próximo torrando a benesse em prendas e vinho, é capaz de lhes dar para pagar dívidas ou, pior ainda, enfiarem o dinheiro debaixo do colchão, desconfiados como andam dos bancos e dos banqueiros.

Como o meu paizinho, que Deus tenha, sempre me ensinou a ajudar os outros, deixo aqui um alvitre. Espécie de ovo de Colombo para uma nova era de consumo. O governo, em vez de diminuir impostos ou dar dinheiro vivo, gratificava as famílias contribuintes com géneros! Era só aproveitar o pretexto e a embalagem natalícia. Deixo uma lista singela, sabendo que é infinito o mundo de possibilidades que assim se abre.



George Grosz



Lista de ofertas do nosso excelente governo às famílias que governa:

Meio peru
2 kg. de bacalhau (cura amarela)
Um bolo-rei (sem brinde mas com fava)
Uma dúzia de ovos (para as filhoses)
Uma couve tronchuda

Claro que as prendinhas não podem ficar esquecidas!


Havendo criancinhas na família:
Uma barbie (fadista)
Um Noddy (ambos de contrafacção, pois há que ajudar a economia clandestina)

Havendo adolescentes na família:
Um curso de formação para o desemprego (para ele)
Um jogo de bolinhas chinesas para prática de pompoarismo (para ela)

Havendo idosos:
Uma rosa (socialista) de plástico (para ela)
Um pin com o rosto garboso do nosso querido líder, eng. Sócrates (para ele)

E pronto, ficava a festa feita. Incrementava-se o consumo, evitava-se a irresponsabilidade da poupança e adiávamos o trambolhão, esse tal Armagedão que há-de vir, por mais uns tempos.

sábado, 13 de dezembro de 2008

A imaginação de Deus

Félicien Rops

Há já muitos anos que tenho esta ideia como verdade indesmentível: Deus, a existir, revelou uma gritante falta de imaginação no momento da criação! Não discuto a sua ilimitada capacidade de criação, mas por isso mesmo me parece evidente que não só poderia ter tornado a nossa vida mais divertida como lhe teria sido fácil tornar menos espinhoso o espinhoso mundo dos afectos!


Milénios e milénios passados e essa espécie de drama quotidiano foi-se tornando parte da nossa natureza. Colada à pele, temos a condenação de vivermos em permanente tensão entre a evidência do dualismo – há gajos e gajas… - e o ideal de complementaridade. Ou seja, por um lado percebemos as diferenças e até as reforçamos, mas por outro vivemos no arrebatamento da procura do amor verdadeiro, aquele capaz de conciliar as partes desunidas numa só alma redimida. Dito assim, tudo parece simples: ao capricho dos deuses que segundo os velhos mitos nos separaram, responderíamos com o achamento da metade que nos falta. Pois é, também por aqui se vê que por vezes as coisas simples se revelam bem complicadas! Porém, e este é o meu ponto, tivesse sido Deus mais ousado e estou em crer que tudo teria resultado mais fácil.

Vai um exercício de pura especulação delirante? Imaginemos então um demiurgo mais criativo que o que nos coube em sorte. Eventualmente bastaria apenas que fosse um pouco mais ébrio. O que importa para o caso é que imaginemos que ele decidia, na sua altíssima e soberana inteligência, oferecer aos seres humanos não dois mas, digamos, cinco sexos! Isso mesmo: esqueçamos o singelo mas grosseiro dualismo ♀ ♂ e atentemos nesta grelha:


SEXO .......................A......B.....C.....D.....E .............A.....B.....C.....D.....E

CONFIGURAÇÃO .........Tipo 1 – Concavo ..................Tipo 2 - Convexo

DESCRIÇÃO ............A 1...B 1...C 1...D 1...E1............A 2..B 2..C 2..D 2..E 2



Imaginemos um pouco mais. O nosso criativo demiurgo, como bebera entretanto uns copitos a mais, decidiu tornar as coisas um pouco mais complicadas. Ou estimulantes, depende da perspectiva... Assim, em primeiro lugar, achou por bem que cada ser humano nascesse provido não de um mas de três sexos - daí a expressão «três é a conta que Deus fez...». Decidiu ainda que as concavidades e convexidades não se encaixassem do modo mais óbvio e lógico. Por exemplo, o A 2 (convexo) apenas se adaptaria ao C 1 (convexo), enquanto que o C 2 apenas encaixaria, digamos, no E 1 (concavo). Confusos? Não é caso para tanto, mas em todo o caso penso que tudo ficará mais claro recorrendo a um exemplo concreto.

O Carlos Alberto e a Cátia Marisa amam-se. Pelo menos desconfiam que sim. Acreditam que se complementam de uma forma suficientemente satisfatória para serem felizes um com o outro. Se quisermos dar uma de liberais, podemos imaginar que ambos partilham uma visão desempoeirada da sexualidade, de tal forma que admitem mesmo que a relação entre ambos admite abertura (controlada) a outras experiências. OK, vou ainda mais longe: ambos possuem uma bissexualidade latente, inequivocamente prometedora de emoções fortes! E pronto, fomos longe na imaginação mas, mais coisa menos coisa, daqui não se passa.
Consideremos agora a solução alternativa. O Carlos Alberto possui os sexos A 1; B 2 e C 1. Quanto à Cátia Marisa, a natureza dotou-a com os sexos A 2; D 1 e E 2. O nosso parzinho entender-se-ia às mil maravilhas através dos sexos C 1 / A 2. Mas e o que ficava por preencher?! É que, por muito que tentassem, as concavidades e convexidades restantes não encaixariam umas com as outras. Que fazer perante tamanha aflição? É neste exacto ponto que esta visão alternativa se torna interessante!

Interessante mas previsível, reconheço. Claro, está bem de ver. Era necessário, indispensável e pacífico abrir a/s porta/s a mais gente. Como sou ruim a matemática abstenho-me de tentar calcular quanta gente mais. Basta fazer notar que cada novo amor trazia consigo uns quantos mais! Uma verdadeira comunidade de amantes! Autentica festa dos sentidos! Com a vantagem adicional, verdadeira cereja no topo do bolo, de acabar com a estrita funcionalidade reprodutiva, pois nesta ordem alternativa todos podiam engravidar e ser engravidados. Talvez existisse a dificuldade de saber quem cometera essa façanha, mas isso já é outra conversa.

Os mais pessimistas dirão que isto só exponenciava o conflito. Hereges, é o que são! Vejam bem: andaríamos todos tão ocupados a descobrir concavidades e convexidades alheias que não teríamos tempo nem disposição para zangas! É ou não é?! E que festiva religião não seríamos nós capazes de fazer para louvar tão providente demiurgo? A evidência do princípio do prazer tornaria indesmentível aquilo que alguns se empenham em negar: é o orgasmo, meninos, é o orgasmo que mais nos aproxima de Deus. Mai nada!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A troca

Henri Cartier-Bresson



Portugal declarou estar disponível para aceitar receber alguns dos prisioneiros de Guantánamo, nomeadamente parte daqueles que não vão ser julgados mas que tampouco podem regressar aos seus países por não terem garantia de segurança nesse regresso. Ora aqui está uma decisão para ninguém botar defeito! Finalmente, parece que o governo decidiu mostrar que a tradição humanista associada ao socialismo democrático não é letra completamente morta. Até eu, tão habituado a este ruim vício de dizer mal de tudo, tenho que dar o braço a torcer: desta vez os senhores do governo andaram bem.

Porém, é sempre possível ir mais longe, mesmo nas boas decisões. Desde logo, há que ter em conta que nos tempos que correm ninguém dá nada a ninguém. É por esta razão que me parece muito razoável passar da aceitação humanista para uma relação mais simétrica. Digo isto porque talvez o governo não se tenha lembrado, mas boa ideia mesmo era procedermos a uma troca de prisioneiros! Sou ou não sou um gajo de ideias?! E até dispenso os agradecimentos do governo ou uma eventual comendazita no 10 de Junho. Deixo a ideia desinteressadamente!

Proponho, por exemplo, que se trocasse o Oliveira e Costa por um perigoso barbudo do Uzbequistão; a dona Fátima Felgueiras por feroz sírio com o respectivo cinto de bombas e até mesmo, porque não, o grande Vale e Azevedo por um chinês dos pequeninos. Garanto que ficávamos a ganhar com a troca! Ganhávamos em tranquilidade e bom viver. O problema é que nós temos gente a mais para o exíguo número de prisioneiros que os americanos querem libertar. Paciência, teremos que deixar os deputados relapsos para segundas núpcias. Não, claro que não é por faltarem às votações que os quero despachar. Quero lá saber se vão ou não ao hemiciclo. Aliás o problema é esse, é ninguém lhe sentir a falta senão quando é para levantar o dedo. Tirando uma mão cheia deles, aos outros não se lhes conhece uma ideia, menos ainda uma obra. Assim, se fossem para Guantánamo, pelo menos podiam obrar por lá…

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Perder a alma e a vergonha

Luís Afonso

Este blog não tem nenhuma linha editorial. Nem quer. A ideia sempre foi a de ir andando e vendo, escrevendo de acordo com essa deambulação, que na verdade é mais mental que física. Apesar desta abertura reconheço que sinto uma certa repugnância em meter a pena em determinados assuntos. Porquê? Ora, porque quando mexemos em merda acabamos, inevitavelmente, por nos sujar com ela. Vem isto a propósito dessa tropa da finança e da governação, desse conúbio excitado, em relação ao qual é impossível dizer quem faz o papel de puta e quem o de garanhão assanhado. Vão alternando, é o que é, facto que só mostra a perfeição da parelha.

Há uns gurus que se esforçam por nos mostrar que a actual crise tem evidentes semelhanças com a que o mundo viveu no final dos anos 20, mas há também outros, tão gurus quanto os primeiros que asseguram que não é nada assim. Enfim, eles que são os gurus que se entendam, mas entre os dois momentos há uma diferença que não pode deixar de ser notada. É que em 1929 os financeiros caídos em desgraça assumiram o disparate. Houve até alguns que pularam dos altos lugares a que tinham subido para se estatelarem cá em baixo, na calçada, junto da gente anónima. É verdade que não temos por cá nenhum Empire State Building e talvez não tenhamos sequer nenhum trampolim suficientemente digno para a excelência das criaturas que nos foram governando as finanças, mas que diabo, não seja por isso, há ainda assim edifícios com altura suficiente para assegurar o sucesso do empreendimento.

Estou a brincar, claro que estou a brincar! Queria lá agora semelhante coisa! Que seria de nós sem esses abnegados cidadãos que de nós tão bem cuidam? E na verdade, não saltar para o vazio, não assumir as consequências dos actos desastrosos que cometeram, é apenas perder a alma. Nada de mais: talvez uma alma se possa comprar… afinal trata-se de gente habituada a comprar tudo. Seja como for, suicídio de honra à parte, mandaria o pudor que se mantivessem num recatado silêncio comprometido. Perder a alma é o de menos, grave mesmo é quando são exactamente os mesmos impolutos cidadãos que se colocam em bicos de pés acenando com a solução para as porcarias que eles mesmo fizeram. Neste caso não se trata já de ficar sem alma mas de perder a vergonha.

«Salve-se a banca, custe lá o que custar!» E o governo diz presente, lançando milhões sobre as frágeis instituições como se fosse um cura de aldeia lançando água benta sobre os pecadores. 450 milhões de euros para o BPP não é nada de mais. Sobretudo se tivermos presente que o fazem com a melhor das intenções: garantir que os «muitos milhares de depositantes não perdem as suas economias», disse o ministro. Veio depois a saber-se que, ao todo ao todo, os tais depositantes perfazem o astronómico número de… 3 mil. Faz lembrar aquelas crianças que quando estão a aprender a contar dizem «1 – 2 – 3 – 4 – 5 – muitos…». O ministro, que é uma espécie de criança retardada, conta «Um milhar – dois milhares – muitos milhares…». Já agora, visto que somos todos nós a pagar a conta, devíamos ter direito a saber quem são esses três mil magníficos que estamos a amparar. E, já agora, se não for pedir muito, era também bom saber quanto abichanaram eles no tempo das vacas gordas…



Vale a pena considerarmos a lógica irrebatível da argumentação. Enquanto se tratou de ganhar milhões jamais passou pela cabeça das selectas criaturas qualquer forma de redistribuição. Vivia-se o liberalismo no seu máximo esplendor:

- Quem tem unhas é que toca guitarra, e nós, que nos preparámos arduamente para ser mais inteligentes, mais capazes, mais competentes, mais informados que a humanidade em geral, porque diabo temos agora que repartir proveitos? Tratem da vidinha, façam-se espertos que nem nós. Então andou a minha mãezinha a ser enrabada em casas de mau porte para eu chegar a engenheiro e isso de nada vale? E o papá, obrigado a assaltar transeuntes no pinhal da Azambuja para me pagar o MBA? Como pode alguém imaginar que possa perder-se tão doloroso investimento - pelo menos muito a mamã se queixava? Ainda por cima em proveito de uma ralé desqualificada! Não faltava mesmo mais nada!

Quem se atreveria a rebater tão poderosos argumentos? Nada mais justo, pois claro. O problema é que logo que o cenário mudou também a retórica se fez nova. Os convictos liberais fizeram notar de imediato que assim não podia ser.

- Será então justo que sejamos nós, nós que tanto nos sacrificámos pelo bem do país, a arcar com este trambolhão dos mercados? Pode lá ser tamanha desfeita! O melhor, o mais justo e o mais adequado à difícil situação é, sem dúvida, distribuir o mal pelos dóceis lombos habituais.

É claro que já se fizeram revoluções por muito menos e aposto até que outras se farão por coisas da mesma natureza. Mas a nós sempre nos tramaram uns tais de «brandos costumes», não sei se têm ouvido falar… Mesmo isto que aqui escrevo não é mais que estéril (e histérico) desabafo, reconheço. Consigo até ver que tudo isto é bem mais simples do que parece. O problema verdadeiro, chamemos-lhe nó górdio, talvez seja apenas o de não termos verdadeiros empresários. Pois é: não temos, nunca tivemos e há demasiada gente empenhada em que nunca venhamos a ter. O que nós temos mesmo é malta especializada em fazer o mal e caramunha, em atirar a pedra e esconder a mão. Meninos que são mais liberais que o mais liberal dos liberais quando a coisa lhes convém, mas que logo estendem a mão ao pérfido Estado quando a vida lhe corre mal. Não só sem mostrarem vergonha, que essa, já o disse, há muito a perderam, mas de peito cheio de certezas: «Somos nós que sabemos como se deve fazer, portanto, arredem-se para lá e deixam-nos trabalhar». E assim vamos. Sempre cantando e rindo como tão bem nos ensinaram.

E o governo, senhores? Pois não é ele socialista? Se o é, não lhe ficaria bem pôr termo a tão desatinado regabofe? Dir-se-ia que sim, mas no que toca à alta finança e à baixa política as coisas nem sempre são o que parecem. O governo já explicou que dava um mau aspecto do caraças deixar falir um banco português. Caiam-nos os parentes na lama se tal desgraça acontecesse. Que diriam de nós os demais? Os estrangeiros, logo eles, sempre tão atentos a fraquezas desse tipo? Pela parte que me toca tendo a achar que ficamos bem pior na fotografia por sermos o país mais desigual de toda a União Europeia. Claro que isto sou eu a misturar alhos com bugalhos. Então não se vê logo que uma coisa nada tem a ver com a outra?

A possibilidade de um banco falir (como se não falissem bancos todos os dias…), isso sim, deve afligir-nos; a pobreza no meio da riqueza é uma coisita desagradável, de acordo, mas que podemos nós fazer? Vendo bem, a desigualdade social nem chega a ser um verdadeiro problema. Então não estamos todos fartos de saber que tal flagelo tem apenas a ver com a baixa produtividade? Pois é! Trabalhem mais e mais ganharão. É a velha história: a competência e o trabalho devem ser premiados.

Já sei: aí vêm os bota abaixo afirmar que a regra nem sempre é essa. Prontinhos a dizer que o senhor Loureiro, que até chegou a ser ministro, se auto-proclamou incompetente. É verdade que as falcatruas lhe passaram todinhas ao lado, mas isso que tem a ver com incompetência? Então alguém acredita que um sujeito incompetente faz fortuna em tão pouco tempo? Dizem-me aqui que sim, que é possível, que está até sempre a acontecer, mas eu cá não acredito. Bom, pelo menos posso esperar que este meu lado de angelical ingenuidade acabará por me levar à glória de Deus. Será que lá também sujarei os dedos a mexer em certos cidadãos?

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Zoo humano

Hans Bellmer


As memórias são assim mesmo: guardamos algumas ciosamente, por vezes a tão bom recato que recusamos mesmo partilhá-las com quem quer que seja, enquanto outras, perdidas sem pena, nos visitam inesperadamente e sem que alguma razão verdadeiramente válida as tenha convocado. Sucedeu isso mesmo quando arrumava uma estante e deparei com um livro que há muito esquecera, Freaks, no qual é revelada uma curiosa colecção fotográfica de «aberrações humanas». Gigantes e anões, irmãos siameses, mulheres barbudas, hermafroditas e homens com cauda, entre muitos outros exemplos de humanas criaturas - a maior parte das quais ganhou a vida exibindo-se em feiras e circos – constituem o espólio recolhido pelo negociante de arte, Akimitsu Naruyama, e mostrado em Freaks.

Este livro, inesperadamente redescoberto, significou para mim dar uma trinca na madalena proustiana, salvo seja. Graças a ele reencontrei-me com uma das primeiras imagens de estranheza e fascínio de que consigo lembrar-me. Trata-se de uma memória de tal forma desbotada que se torna impossível distinguir as fronteiras entre aquilo que de facto vi e o que terá sido posteriormente acrescentado. Na cidade de província onde vivia chegou um dia, juntamente com outras atracções de feira, o «Gigante de Moçambique». Estou certo de que foi mais por curiosidade minha que por interesse próprio que meu pai me levou à tenda onde o «fenómeno» era exibido.

Julgo que se viveria então o começo dos anos 70, época em que atracções como aquela ainda agitavam o quotidiano das cidadezinhas de província. Não esqueço que vivíamos então num país esquisito, mais esquisito ainda do que o país em que hoje vivemos, mas ainda assim, olhando a esta distância, uma exibição como aquela talvez enfermasse já de um profundo anacronismo. De facto, os freaks do meu livro tiveram a sua época. Fizeram furor no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX mas desapareceram de cena tal como o Emplastro Leão ou o óleo de fígado de bacalhau. Sobraram todas estas fotos que agora olho, enquanto procuro, nos subterrâneos da memória, alguma imagem mental do «meu» gigante moçambicano. Vício de putativo e frustrado escritor, não posso deixar de pensar nas fantásticas possibilidades narrativas contidas naquelas vidas singulares. Acho que foi por esta razão, confessadamente interesseira, que procurei saber mais sobre aquele homem desmesurado que vi pela mão de meu pai. Num outro post falarei dele, mas por agora deixarei de lado esses quase dois metros e meio que lhe deram fama e sofrimento. É outra a questão que aqui me interessa.



«Vénus hotentote»


No início do século XIX uma jovem bosquímane de nádegas salientes, apelidada de «Vénus hotentote», fez furor na Europa, sendo exibida ao público ao lado de outros «fenómenos bizarros». A particularidade anatómica que fez dela objecto de curiosidade - tanto de cientistas quanto do público anónimo - era vista como característica da sua «raça», facto que, está bem de ver, confirmava alguns dos estereótipos mais correntes acerca da sexualidade desbragada dos selvagens. Muito embora fossem muitas as características e diversas as proveniências das «peças» expostas num autêntico zoo humano planetário, pode dizer-se que uma parte importante dessa estranheza oferecida à curiosidade dos «povos civilizados» resultava do próprio processo colonial. Nativos semi-nus, pintados ou tatuados, falando línguas incompreensíveis, vivendo em palhotas e dançando seguindo o «ritmo do batuque», eram uma componente indispensável, por exemplo, em exposições coloniais - como a de Paris (1931) ou a do Porto (1934).

A chegada desses homens e mulheres às metrópoles constituía, assumidamente, uma excelente oportunidade para generalizar e «democratizar» a experiência do exótico. O povo agradecia penhorado a possibilidade de admirar as mamocas das pretinhas e até, quem sabe, a ferocidade domesticada de verdadeiros caçadores de cabeças. Bem sei que este contacto com o diferente não se circunscreveu aos nativos importados pelo colonialismo. De qualquer forma, o importante é perceber que tanto uma mulher barbuda, proveniente de uma qualquer província metropolitana, como um nativo do Império, cumpriam um papel muito semelhante. Ambos alimentaram o imaginário de várias gerações de homens e mulheres que a si mesmos se viam como "civilizados", mas, para lá disso, ambos podem ser vistos como despojos de um mundo em mudança. Um mundo que aspirava a uma apaziguadora conformação, que devia abranger tanto a disciplina do corpo como o modo de sentir, tanto a experiência da fé como a confiança numa «civilização» redentora.

O que foi que sobrou desse imaginário? Será que dispensámos definitivamente esse circo do bizarro e do monstruoso? E, se o fizemos, como podemos nós passar sem esse imaginário que tão claramente nos situa e define por relação aos que nos são estranhos? Coloco a questão de uma outra forma: se esse nosso fascínio pelo que está para lá das fronteiras do que somos tem realmente importância para a nossa definição identitária, de que forma foi substituída a exibição impudica de alteridade que encantou os nossos pais e avós? Qual o seu substituto funcional? Estou certo de que os media, pela revolução que imprimiram ao modo de ver e de evocar, são parte decisiva na resposta a essa questão. Podemos simplificar, falando de uma passagem do oral ao escrito - muito embora estejamos conscientes da insuficiência desse processo, nomeadamente se ele deixar de lado toda a espantosa multiplicação do que nos é oferecido ao olhar. Instrumentos como a fotografia, o cinema ou os videojogos, possuem a inequívoca capacidade de responder a essa fome de imaginário que hoje, tal como no passado, não dispensa da sua dieta a extravagante diferença que ao mesmo tempo nos seduz e ameaça.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

100 anos são muitos dias!



Claude Lévi-Strauss completa hoje 100 anos, pelo que fica demonstrado que não é só a realizar filmes aborrecidos que se chega a tão provecta idade. Como um blog não é um livro de efemérides nem sequer um apartado de alguma enciclopédia, não falarei aqui da figura nem propriamente do seu trabalho. Reterei apenas um aspecto (quem quiser saber mais é fácil googlear ou coisa assim...), exactamente a importância que Lévi-Strauss dedicou à diferença cultural e à sua preservação.
A sua ideia é fácil de entender mas nunca foi fácil de implementar: se quisermos entender o Homem na sua plenitude temos que o conhecer nas suas múltiplas expressões, pelo que nos devemos empenhar na compreensão das diferenças e na sua preservação. Daqui decorre uma conversa conhecida mas que nem por isso altera as práticas sociais e políticas: por cada cultura ou língua que desaparece, desaparece também uma parte daquilo que somos enquanto humanos. Pareceu-me uma boa maneira de lembrar o velho sábio: evocar este desejo de entender o outro e esta crença na nossa capacidade de o fazer. Ocorre-me também perspectivar os próximos 100 anos e neles que bom seria se, no plano estritamente individual, todos nós fizermos também um esforço para aceitar o outro tal-qual ele é. Coisa fácil? Nem tanto assim. Haveria que resistir a essa tentação de nos tomarmos como padrão e aprendermos a ver no que nos separa dos outros não uma ameaça ou um desafio mas uma oportunidade de nos enriquecermos.
Nota final: quando falo desta aceitação da diferença não estou a pensar apenas naqueles de que mais facilmente nos distinguimos - seja pela cor da pele ou origem social. Falo de algo mais amplo e omnipresente: o que nos distingue dos nossos próximos, dos companheiros no sentido próprio do termo, ou seja, aqueles com quem partilhamos o pão, mas também das pessoas com quem partilhamos o leito e a vida. É por aí, por esse desafio de proximidade feita de diferença, que o caminho deve começar.




segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Amor-humor

Martin Van Maele



Abençoado modernismo brasileiro, que não só nos deu a conhecer o impagável Macunaíma e nos deslumbrou com as telas de Tarsila do Amaral como nos legou também a fantástica sabedoria do amor contida no célebre poema de Oswald de Andrade:


Amor
Humor



Não sei se a literatura em língua portuguesa tem algum poema mais curto que este mas estou certo de que poucos se lhe igualam em assertividade e inspiração.
Prova provada de que, pelo menos neste campo, o tamanho não é realmente importante, o poema de Oswald contém todo um projecto de vida e uma inspiração de consumação existencial: fazer sorrir o nosso par! Claro que não é apenas isso, pois o amor não é uma comédia de costumes. Pode até dizer-se que o mais decisivo se encontra noutro lugar do poema - sim, eu sei que é estranho, mas mesmo num poema tão pequenino podemos encontrar recantos escondidos! Falo da dessacralização do amor, dessa arremetida contra a certeza da dor que parece prefigurar cada relação. Amar é sofrer de amor. Sofremos pela dúvida, mas se não a tivermos sofremos pela convicção de que a certeza não pode durar sempre. Podemos também sofrer pela violência da paixão muito embora não deixemos de sofrer quando essa mesma paixão nos ignora e nos passa ao lado. Afinal, talvez o sofrimento seja um alimento indispensável para a alma mas se assim é que o riso seja o digestivo para tão pesado alimento! Amor/Humor? Sem dúvida que sim! Antes isso que um rebuscado lirismo, daqueles que sempre dão mau resultado!
É mentira o que digo? Consideremos então o que diz o vate:

Amor é fogo que arde sem se ver
(Diacho, bem sabemos que o homem tinha só um olho operacional, mas ainda assim parece-me incrível que não tenha visto o que queima o olhar! «Fogo que arde sem se ver»?! Como pode alguém que amou de verdade não ter visto a sua amada em chama viva? Confesso que não entendo, mas a burrice será realmente minha?).

É ferida que dói e não se sente
(Ai não que não se sente! Gajo insensível, heim! Deve ser por estas e por outras que se criou essa ideia peregrina de que o homem apenas sente e pensa pela pila! O caraças: a gente sente e vê a ferida, mexemos até nela e como por vezes temos ainda os dedos sujos com as cinzas dos amores que nos feriram acabamos por agravar dor e ferida...).

É um contentamento descontente
(Com esta é que eu me passo de vez! «Contentamento descontente»? É este o ponto; é este o mal! Tal a demência de quem assim ama que já nem a alegria sente como alegria. Contentamento descontente não é bem ficar trombudo depois do acto, mas no mínimo é ficar seráfico e virar costas ao diabinho que nos puxa o sorriso alvar de quem se lambuzou todo de chocolate e menta e está com vontade de voltar ao pote!).

É dor que desatina sem doer
(Quem desatinaria seria eu se acaso continuasse com este exercício de olhar o poeta no seu desvario! Melhor ficar por aqui, até porque para ilustração já basta assim!).

Martin Van Maele

Num conhecido ensaio, Henri Bergson defende que "o riso não tem inimigo maior do que a emoção". Para ele, "numa sociedade de inteligências puras provavelmente deixaríamos de chorar, mas talvez continuassemos a rir; ao passo que um mundo de almas invariavelmente sensíveis, afinadas em uníssono pela vida, onde todo e qualquer acontecimento se prolongasse numa ressonância sentimental, não conheceria nem compreenderia o riso".
Se Bergson o diz quem sou eu para desdizer? Mas que sucede quando amor se conjuga com humor, como no brilhante achado de Oswald de Andrade?



Amor

Humor


Casamento espúrio, acham mesmo que é? Eu não acho. Para além de rimarem, amor e humor têm em comum o facto de só poderem ser feitos acompanhados. É claro que podemos ter prazer sozinhos e rir sem que ninguém nos acompanhe, mas mesmo nesses casos há uma dimensão evocativa que implica um outro. E depois há ainda o valor facial das palavras, a sua história e espessura. Todos nós sabemos (pelo menos assim espero...) como o amor carnal, esse tesão que nos devora e consome, se transmuta em humidade - seja ela suor, saliva ou tudo o mais. Ora bem, é ou não verdade que essa humidade tem a sua raiz em húmus, que não é senão a matriz latina da palavra humor?! E atrever-se-á alguém a declarar que o amor, na sua expressão vibrante de sexo consolador e festivo, não melhora o nosso estado de alma? Não há como negar: alegria e bom humor têm uma relação umbilical com o prazer e este, mesmo recusando tomar a parte pelo todo, tem no sexo um importante pilar.

Mas tem ainda uma outra dimensão nesse feliz casamento entre amor e humor. Já o referi e com ele finalizo: a possibilidade de dessacralizar o afecto sem que a paixão se perca. Sempre temos um problema quando falamos de amor: há um excesso de sentido para um vocabulário demasiado limitado. O amor pode ser muitas e variadas coisas e as palavras de que dispomos para o caracterizar são claramente insuficientes. Ainda que esteja longe de ser a única razão, é também por isto que os desacertos afectivos são tão inevitáveis. São esses desacertos, sejam eles pontuais ou estruturais, que fazem a nossa história afectiva e essa história, que constantemente reescrevemos, soa sempre melhor quando nos servimos do humor para a colorir. Dói menos assim e, se querem mesmo saber, eu até acho que fica mais verdadeira quando a contamos de modo a que dela possamos sorrir. Ou rir a bandeiras despregadas... depende dos casos e dos acasos.




Martin Van Maele

Apanhado a fumar!

Rick Castro


Este post marca uma novidade absoluta neste blog! OK, é verdade que pela primeira vez aparece aqui um homem nu, mas não é essa a novidade absoluta a que me refiro. Trata-se antes de uma questão técnica. Sempre, até hoje, tenho partido da escrita, sendo em função dela que a imagem se revela, surgindo, assim, como ilustração mais ou menos evocativa do que foi escrito. Desta vez segui o procedimento inverso: foi a foto que acompanha este texto e o título que Rick Castro lhe deu que motivaram estas linhas.
«Apanhado a fumar», declara o autor! Existe na foto uma evidente vontade de provocar e de se servir do humor para piscar o olho a quem observa. Porém, o que mais me interessa nesta foto é o que ela sugere acerca das ideias de transgressão e de castigo. A ambiguidade destes dois vectores é por demais evidente: a transgressão não é para levar a sério e o castigo contém em si mesmo uma forte sugestão de prazer, sendo que é nesta sugestão que está contida, verdadeiramente, a dimensão transgressiva. Tudo se reduz, portanto, a uma encenação feita a partir de um conteúdo narrativo conhecido e que o autor reescreve. Sei que esta é apenas uma interpretação entre outras possíveis, mas foi essa a leitura que conduziu o meu olhar e também é ela que orientará o meu argumento.
A provocação, pois também aqui é de uma provocação que se trata, é a de sugerir que olhemos para os afectos reais a partir desta matriz cénica. A hipótese de partida é a de que hoje em dia tende a afirmar-se um regime afectivo em que a neutralização da transgressão se faz recorrendo a uma transgressão maior. Consideremos uma transgressão banal aos convénios matrimoniais ou para-matrimoniais como é o adultério. Em torno dele existe um conjunto de narrativas conhecidas e mais ou menos cristalizadas, as quais enfatizam temas como o da traição, da destruição dos lares ou de uma distinta tolerância em função do género, entre outros. Sem dúvida que a valorização de uma sexualidade mais activa e participada obrigou a uma reformulação destas narrativas, mas ela teve, porém, um efeito ainda mais espectacular! Estou a falar da neutralização desta forma de transgressão pela exponenciação de uma transgressão maior! A multiplicação do swing (há sites que têm centenas de casais inscritos) ou a frequência, por parte do casal, de locais dedicados ao sexo - sejam eles físicos, como uma sexshop, ou virtuais, por exemplo sites com conteúdo explícito - evidenciam essa transgressão partilhada.
Esta assumpção da transgressão tem um efeito paradoxal: não só neutraliza os efeitos contidos nas narrativas acerca da infidelidade como domestica a própria transgressão. Tal como sucede na foto de Rick Castro, crime e castigo ficam restringidos a um efeito cénico, ou seja, são contidos no acto ritual a que passam a pertencer. De facto, muito embora esta transgressão domesticada se expresse de várias formas, no essencial está contida num espaço e num tempo definido, sendo essa a marca mais evidente da transformação em ritual. A dimensão cénica e performativa pode até ser mais realçada se considerarmos que muitos dos comportamentos assumidos não chegam nunca a concretizar-se. A transgressão pode, efectivamente, ser apenas um simulacro sem que por isso perca eficácia. Anunciar a disponibilidade para cometer a transgressão significa corporizar uma narrativa que contém eficácia simbólica: converte-nos em agentes de uma forma (pós) moderna de viver o amor.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Antes asno que me carregue...

Robert Mapplethorpe



Uma muito querida amiga, reflectindo sobre as agruras de infidelidade, sublinhava há uns dias a inconveniência dos amores com pessoas demasiado interessantes. Inteligente como é (note-se que, por definição, todas as minhas amigas primam pela inteligência), achou por bem caracterizar a situação a partir de um locus masculino. Um homem que ande com uma mulher muito bonita, dizia ela, tem sempre o problema de saber que inúmeros outros homens a desejam e se esse conhecimento não gera insegurança ou incerteza, alimenta, pelo menos, o receio de a perder. Julgo que não estou a desvirtuar o seu pensamento se disser que o «bonito» pode aqui ser estendido a outros atributos como o charme ou a inteligência. De qualquer forma, independentemente do factor distintivo ser a inteligência ou a beleza física, o argumento não podia ser mais claro. Ainda que sem certezas definitivas sobre a resposta ao dilema, a minha amiga ponderava se não seria preferível uma relação com alguém medianamente interessante e fiável do que com alguém verdadeiramente interessante mas mais susceptível às tentações. Cá para mim, bonitos ou feios, inteligentes ou broncos, ninguém é de ferro. Ou seja, a fiabilidade é uma variável independente, pelo que a argumentação me parece ter um efeito mais retórico que clarificador.
Foi por isso, e também porque gosto de imagens fortes, que lhe disse logo na cara: «O que tu me estás a dizer é que preferes asno que te carregue a cavalo que te derrube». Na verdade não era bem isso. Ela não queria um burro-burro nem tampouco um feio-feio, como rapidamente percebi pela sua manifestação de desagrado. É claro que eu, atreito como ando a mal-entendidos, me apressei a contemporizar. Declarei de mão no peito que nada me move contra os simpáticos asininos e menos ainda contra os feios. Depois, convencido que um pouco de erudição fica bem em qualquer conversa, evoquei Boris Vian, escritor que muito me agrada, para assegurar que jamais me passaria pela cabeça fazer do título do seu conhecido policial, Morte Aos Feios, um slogan evocativo e menos ainda um princípio de vida. Como isso não chegou para a tranquilizar, procurei mostrar-lhe que a beleza vale bem pouco e que a culpa desse baixo valor não tem sequer a ver com o sossego que nos é roubado quando o nosso par é demasiado interessante. A beleza, quando muito, alimenta o ego mas deixa o corpo à míngua, ou seja, como diria o nosso inestimável povo, «cantoria sem comedoria é gaita que não assobia». Portanto, teima de cigarra que não aprende com velhas fábulas. Percebendo no seu olhar a sombra evidente do cepticismo, fiz-lhe ver que muita e diversa gente percebera esta verdade na pele. Lembras-te do inspirado Allen Ginsberg e da pergunta que formulou no doutrinário poema América: «Quando poderei eu entrar no supermercado e comprar tudo o que preciso com a minha beleza?». Ela lembrava-se e desconfia, tal como eu, que também neste caso a beleza de nada valeu: por certo o ilustre poeta morreu sem se livrar de pagar as contas da mercearia.
Bem sei que com esta conversa me desvio do ponto essencial da conversa e da inquietação da minha amiga. O ponto fundamental é o do equilíbrio entre razão e paixão. Ela bem o sabe e por muito que queira ser possuída pela razão, há sempre um pedacinho irredutível dela mesma que lhe prega uma rasteira e a atira para os braços da paixão. É por isso que evocar um «ponto de equilíbrio» é só uma forma de falar. Digamos que é uma espécie de aspiração apaziguadora ou uma promessa de serenidade. Poder-se-á dizer que um compromisso entre o burro e o cavalo? Hummm... talvez não, posto que os hibridismos funcionam mal neste delicado campo dos afectos. A não ser que a proposta de compromisso se manifeste numa alimária mitológica: o unicórnio! Belo animal, sem dúvida - além de sugestivamente fálico!
Por tudo isto, em verdade te digo: façamos sem hesitação o caminho que nos apetece. Quanto aos trilhos que ficaram para trás, para esses nem vale a pena olhar, pois que de estátuas de sal já todos temos a nossa conta. Dizendo o mesmo de outra forma: burro, alazão ou unicórnio, que se funda montada e montador e assim, nesses preparos, que ambos percorram caminhos capazes de os encantar.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Pero… hay gobierno?


Como a confissão alivia a alma, começo por uma declaração de interesses. Eu sinto-me sempre como o conhecido anarquista espanhol que foi empurrado para o exílio mexicano pelas tropas fascistas de Franco. Figura respeitada, foi logo cercado à chegada por um bando de jornalistas nativos que lhe pediram um comentário à disponibilidade do governo mexicano para o receber. Olhando-os com genuíno espanto exclamou de pronto: «Pero, hay gobierno? Soy contra!».
Tal como para ele, também para mim a questão não é ser este ou aquele a governar. Sou contra e pronto! Isto não significa que não existam governantes ou momentos de governação que estimulem particularmente esta minha aversão a quem manda e ao próprio acto de mandar. É assim que me sinto hoje, ao pensar nos atolambados que nos calharam em sorte. Este sentimento foi despoletado por uma notícia de rodapé que vi esta tarde num jornal gratuito: o nosso inefável primeiro-ministro garantiu que até ao final do primeiro trimestre de 2009 Portugal seria o único país do mundo em que todas as crianças dos primeiros anos de escolaridade terão um computador! Bem pode o mundo inteirinho roer-se de inveja. Verdade! Hão-de os nórdicos roer as unhas até ao sabugo com inveja do nosso querido Magalhães. Fiquem lá os noruegueses com o bacalhau, os suecos com os armários e os roupeiros e os finlandeses com os telemóveis, que a nós é que ninguém pára! O primeiro país do mundo! É obra! Claro que deve dar direito a entrar no livro dos recordes. Ao lado da maior feijoada e do empregado de mesa equilibrista! No mesmo jornal gratuito (leitura que vou alternando com A Bola) li também que a filha de Katie Holmes e Tom Cruise, uma tal de Suri, está no lote das crianças mais fotografadas do mundo. Talvez isso seja uma sorte ou um azar, pouco importa, mas vocês acham que a pequenita Suri tem um Magalhães?! Nem pó! Mas se tiver sorte, pode ser que o Zé Sócrates vá dar uma daquelas suas corridas de calção e guarda pretoriana pelas ruas de Hollywood e lhe leve a mais desejada das prendas: o computador Tintim.
Juro que quando falei de «pó» não estava a fazer nenhuma insinuação maldosa, mas lá que parece que alguma coisa anda a toldar o juízo desta tropa, lá isso parece. Então não bastava já aquela manifestação de pura piroseira pacóvia quando o nosso José decidiu presentear os líderes ibero-americanos com a maquineta? Bem fez o estouvado do Hugo Chavez que logo o arremessou (sabe deus a quem) para assim se assegurar da solidez do presente. Insinua-se que o presidente Lula sambou sobre ele com grande donaire e uma fonte geralmente bem informada garantiu-me que o nosso José está a negociar com uma escola de samba a adopção do Magalhães como tema para o próximo desfile de Carnaval.
E assim vamos, cantando e rindo, esperando, como sempre esperámos, a vinda de um Salvador que faça de nós o que queremos mas não conseguimos ser. A vez agora é do Magalhães. Símbolo da mais elevada tecnologia lusitana, é ele que nos vai redimir e salvar. Salvar de quê?! Não dos políticos que temos, que a tanto não chega o brinquedo azul. Mas redimir-nos-á do nosso atraso secular e da mansidão com que nos ensinaram a viver a vida e a aceitar as injustiças sociais. Redimir-nos-á pela certa. Afinal, mesmo que falte a sopa e o pão às inocentes criancinhas, o Magalhães as consolará!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Da selva do desejo ao contrato redentor

Aldo Palazzolo

Um post recente suscitou comentários anormalmente abundantes para a modéstia deste blog. A eles volto, ao post e aos comentários, por nenhuma razão particular, a não ser a de despejar alguma da verborreia mental que sempre se forma depois de um almoço bem regado.
Um/a leitor/a anónimo/a, certamente que motivado/a pela nobre intenção de salvar a minha pobre alma condenada, quis partilhar comigo um longa (ex)citação. Não vejo nenhuma outra razão para que alguém que presumo não conhecer, uma vez que me trata por você, me tenha remetido tão longa prosa. Um missionário, por certo, ou então a alma imaculada da madre Teresa, que foi de Calcutá e quiçá ande agora pela Net assombrando retóricas mais ou menos desbragadas. O extracto citado pareceu-me apenas medianamente interessante, mas ainda assim agradeço penhorado a desinteressada dádiva. Bem haja!
Porquê esta mediania? Desde logo porque me parece que o autor parte de alguns pressupostos errados. Admito, com todo o fair play, que esta convicção, absolutamente pessoal, possa ser apenas um efeito do pós-almoço, mas estou absolutamente seguro que nada daquilo que o senhor diz se adequa ao que escrevi no post ou àquilo em que acredito. Por exemplo: eu, que não rejeito de forma alguma a minha parte animal, jamais recorreria à bicharada para justificar o que quer que fosse. Deus me livre e guarde! A natureza oferece-nos exemplos para tudo, mesmo para aquilo que nós nem sequer imaginamos que possa existir. Podemos até pôr de lado as coisas esquisitas, como a bicha-solitária, que apesar se solitária não deixa de pôr ovos aos biliões ou a valente fêmea louva-a-deus, que parece atingir o orgasmo arrancando a cabeça ao maridão. Deixemos tais excessos e consideremos apenas alguns “primos”, com quem partilhamos mais de 90% do código genético, os gorilas e os chimpanzés. Enquanto os primeiros acham por bem dar uma queca anual e arrumar assim a situação, os chimpanzés passam basicamente o tempo todo “naquilo”, saltando para cima de tudo o que se mexa. De qual destes casos estaremos mais próximos? De nenhum, posto que não somos gorilas nem chimpanzé mas seres humanos.
Mas esta não é a única questão que o texto levanta. Um outro problema é o da pouca importância dada ao tempo histórico. Substitui a sua complexidade por uma banalidade psicologizante: as mulheres, que se tornaram livres, são agora mais acessíveis como parceiras sexuais mas ao mesmo tempo mais ameaçadoras para o homem. Podia dizer-se de outra forma: as mulheres libertadas entopem milhões de sítios e blogs, num dilúvio de pornochachada revelador de freudianos recalcamentos dos machos ameaçados!! Ora, meus amigos, a falar verdade, tudo isto é treta superficial, com a qual não vale a pena perder grande tempo – sobretudo este tempo de qualidade que é o do pós-almoço bem regado…
Vejamos mais: o autor do ensaio citado mostra-se ressentido pela forma diferente com que, no seu juízo, se cumprem ou não cumprem contratos e compromissos. Argumenta que nos esforçamos por cumpri-los ao nível comercial ou profissional mas que não há nenhum pudor em desrespeitar aqueles que dizem respeitos aos afectos. Será porque nuns se paga multa e noutros não? Nã… deve haver outras razões, mas as que o escriba revela não passam, uma vez mais, da banal psicologia da alcova. Atrevo-me a dizer que neste ponto o autor parece um daqueles malucos que quando apontamos a lua só vê o dedo! Viver em sociedade, como há já tantos anos Rousseau percebeu, é viver num regime de contrato social. São múltiplas as dimensões implicadas neste regime de contrato e a mim parece-me bem que também os afectos se regulem por este princípio, seja ele formalizado por escrito ou apenas assumido oralmente. Qual é então o problema? Onde está o dedo e onde a lua?
O problema é o mesmo que se manifesta em todos os liberalismos, sejam eles económicos, políticos ou afectivos. É um problema de falsos pressupostos, concretamente o pressuposto de que todas as partes envolvidas se equivalem, todas jogam com as mesmas cartas e todas têm o mesmo conhecimento do jogo. Não é nunca isto que acontece. O poder existe disperso por todo o tecido social, mas daí não decorre que a sua distribuição seja igual. Ao contrário, distribui-se desigualmente e essa desigualdade de base determina todo o jogo social. Perguntarão: mas a malta não pode conversar e chegar a um consenso? Claro que pode, mas isso não obsta à desigualdade das partes. É que tudo nos distingue, até mesmo no consenso: o capital social e simbólico, os marcadores de género, a capacidade de argumentação, a experiência de negociador, etc. Ou seja, para o dizer de forma clara, os contratos, tanto os que assinamos no banco como os que estabelecemos livremente com o nosso par, podem e devem ser livremente assumidos mas isso não obsta a que um eventual carácter leonino os caracterize!
É curioso como um texto que começa por censurar o abuso de exemplos da fauna para legitimar aquilo a que chama “promiscuidade” recorra depois a um grosseiro biologismo. Tudo se reduz à ideia do macho-predador e da fémea-presa. Lugares comuns, como a incapacidade do homem expor os seus sentimentos ou a dicotomia entre dama-esposa e puta-amante, são, por isso, expressão de uma retórica desconchavada, própria de uma personagem queirosiana.
Poderá então sair-se disto? Deste desconsolo que parece condenar-nos a um desentendimento mais ou menos permanente? Por acaso eu acho que sim, mas vou deixar a revelação do segredo para outra hora. Afinal, a longa mão de Baco ampara-nos mas não nos ampara para sempre. Fico à espera de outros almoços e outros eflúvios licores. Direi apenas que esse insensato desejo de vermos o outro como extensão de nós, esse pecado que nos conduz aos mais ridículos actos e desvarios, é uma espécie de monstro sombrio que guia os nossos passos e acções. É na liberdade que nos encontramos, não na fantasia da complementaridade e simetria com que constantemente nos acenam.

sábado, 8 de novembro de 2008

Da mão à boca: a honesta volúpia


Tenho por mim a firme convicção que altura nenhuma é inadequada para evocar prazeres e com eles convocar memórias de partilhas e experiências transcendentes ou reafirmar as fantasias que nos guiam. Findo o estio, chegado, ainda que de mansinho, o suave Outono, é hora de preparar o palato para novos sabores. Ou para velhos sabores redescobertos. Deixar que as sensações tácteis, visuais e gustativas da nova estação se incorporem no nosso corpo e sejam uma porta escancarada à descoberta. A essa abertura e disponibilidade para o mundo, que, falando verdade, raras vezes usamos, podemos chamar liberdade.
É justamente o principio de uma liberdade intrínseca e irrevogável o que me fascina na imagem do libertino. Existe nesta personagem, porém, uma outra categoria, não menos importante e que igualmente me encanta: a sua inteireza ou coerência. Só por ela se pode assumir o hedonismo na sua plenitude, fazendo da busca do prazer a finalidade última de toda a acção. Não é este o lugar para discutir as implicações éticas e morais desta postura, nem para discutir as modalidades de conciliação entre a busca do prazer egoísta e a preocupação pelas outras pessoas. O objectivo é mais simples e modesto: apenas falar de sensações, de sabores e também de memórias, procurando mostrar como planos analiticamente distintos se misturam e confundem. Que outra razão pode explicar que a mesma mão que acaricia e a mesma boca que beija sejam também capazes de uma honesta volúpia.
Convoco, como a maioria dos meus ilustrados leitores certamente já perceberam, a obra seminal da arte gastronómica, De Honesta Voluptate (1470), atribuída a Platine de Crémone. Eu nem acho que exista alguma volúpia desonesta, mas lá que foi um título bem encontrado, isso foi. O Alfredo Saramago usou-o como subtítulo de um curioso livrinho a que chamou Cozinha Para Homens. Recomendo a leitura aos mais ineptos ou com falta de imaginação. Só têm que procurar a secção que lhe interessa, já que o livro se divide em cozinha para o amigo, para o amante e para o marido. Nada contra a unificação desta santíssima trindade, pelo contrário, mas em todo o caso há sempre momentos em que vestimos mais uma dessas peles que as outras, pelo que a divisão que o gastrónomo propõe não é completamente descabelada.
Desta honesta volúpia que nos prende pela boca, volto à experiência dos libertinos para vincar a coerência com que se movem na procura dos prazeres, quer dizer, o modo como sabiamente misturam planos que alguns vêem separados. Leia-se Marquês de Sade ou Casanova e perceber-se-á como a alimentação assume a importância de uma verdadeira ciência afrodisíaca. Nada de espantar: é o mundo das sensações que permite a plenitude, ou, dizendo de outra forma, tudo está ligado pelo fio dos sentidos: a selecta e requintada refeição como prelúdio para o amor e este, na medida em que nele sempre comemos e somos comidos, reenvia de novo, inevitavelmente, para o prazer de boca que o antecedeu e anunciou.
Detesto conselhos e tiradas morais e sempre peço aos amigos que me açoitem quando em tal pecado incorro. Atrevo-me, porém, a declarar que se temos que sofrer de alguma coisa antes seja de licenciosidade que de acrasia. É bem mais divertido viver o desejo sem conflito do que fugir do que sabemos ser bom. Culpa dos demónios interiores em ambos os casos, já sabemos. Mas isso prova ou não que Deus, a existir, anda um bocado distraído? Como pode querer o entendimento e a harmonia entre os seres que criou se convoca demónios tão contraditórios para nos montarem guarda?!
Deixemos de lado frágeis filosofias, as únicas que cabem nestas curtas linhas, e centremo-nos no que motivou este texto: a mudança de estação, as sensações visuais e tácteis que provoca e as memórias que a nostalgia outonal sempre trás consigo. O que importa agora é sublinhar esse percurso que vai da mão à boca, procurando potenciá-lo como caminho de sedução. Acto de amor que apela à metamorfose do desejo, confundido a boca que beija com aquela que devora. Tão voraz uma quanto a outra, por obra dessa infinita magia que se chama prazer.
E para que não fique tudo na palavra inconsequente, deixo uma sugestão aos amantes. Digamos que gostaria que fosse um modesto contributo para um amor feliz. Sugestão pensada para um começo; para aquela altura em que ainda nada aconteceu mas tudo está prometido. Aquele momento cada vez mais frequente em que o apaixonado decide surpreender a amada com uma refeição confeccionada por si.




Creme de chalotas com redução de Malvasia.

Corta as chalotas (250 gr. devem chegar) em quartos e leva a alourar por breves instantes em manteiga clarificada. Refresca com um cálice de vinho da Madeira de casta Malvasia. Quando as chalotas tiverem absorvido o vinho quase todo cobre-as completamente com igual quantidade de Madeira e de um bom tinto maduro. Deixa cozer em lume estupidamente brando durante uma hora e meia a duas horas. Tens que ter o cuidado de ir vigiando e acrescentado vinho, sempre em igual quantidade de maduro e Madeira. Cerca de 15 minutos antes do final da operação deves temperar com flor de sal. Passadas as duas horas de cozedura as chalotas estarão transformadas num puré avermelhado o oloroso e nessa altura deves tirar do lume, juntar cerca de 50 gr. de uma boa manteiga (recomendo à la baratte, mas se não houver serve uma boa manteiga açoriana) e mexer bem com as varas de modo a incorporar algum ar à coisa. Finalmente o último toque: uma pitada de pimenta verde moída na altura.
Tratando-se da situação enunciada – procura da vez inaugural – recomendo que o preparado seja acompanhado de um bife do lombo (ou do lombelo, caso tenhas boas relações no talho lá da rua e este te arranje esta magnífica peça absolutamente esquecida pelos nossos supermercados). Nada de acólitos pesados no prato: dispensa a tentação da batata frita e prepara uma salada de rúcula selvagem. Afinal o objectivo é aquecer a dama e não empanturrá-la! Escusado dizer que acompanha com um bom tinto maduro. Se fores rapaz de poucas posses aconselho-te um Palmela (Dona Ermelinda, por exemplo), talvez a região onde se encontra melhor relação qualidade/preço. Se estiveres medianamente abonado podes escolher melhor. Olha, por exemplo um bairradino, o Diga? - se outra razão não houver pelo curioso nome, capaz de suscitar libidinosos jogos de palavras. Agora, se fores gajo de nota preta e a amada merecer a pena, então faz uma loucura: vê se consegues ainda encontrar o último Barca Velha! Ah, e se a coisa resultar vê se te lembras da ajuda e manda-me lá uma garrafita!
As entradas deixo ao teu critério (afinal ninguém me paga para isto…), mas não dispenses uma mousse de chocolate no final. Fantástico final para um grande começo! Abençoado Toulouse Lautrec, que sendo um grande pintor e um emérito putanheiro, ainda encontrou tempo para inventar esta bênção do palato. A que tu preparares que seja leve (substitui as gemas por umas colheres de natas); servida em pequena quantidade e que deixe na boca dela - que já anseia pela tua - um travo ligeiramente amargo (usa chocolate negro e, se necessário, “reforça-o” adicionando-lhe cacau).
Boa sorte e que os deuses gastrónomos te protejam!

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Remington




Christian Coigny


Com a solenidade que há muito encenara escreveu as derradeiras letras: «FIM». Finalmente aquelas letras, conjugação de astros no horóscopo prometido. Colocou ambas as mãos na pilha de papel dedilhado a máquina de escrever e evocou aqueles longos meses de penoso trabalho. Lançou a baforada cinzenta que retivera nos pulmões sobre as teclas marmóreas e ficou a ver como o fumo as envolvia. Adorava cenários íntimos e decadentes. A virtude do ícone na era da informática! Que outra razão para insistir em escrever numa velha, velhíssima, Remington? Queria para si uma imagem tão forte como aquele aço temperado - Remington misturando-se com o seu nome, a máquina como extensão do corpo, os dedos precisos acariciando as teclas com ternura de amante.
Viver num cenário! Fascinava-o a ideia, vendo nela um vislumbre de perfeição. Bem sabia que o cenário é apenas a parte que deixamos ver e queremos mostrar, caminho indispensável contornando a verdade. Era cenário a batida compassada das teclas e a imperfeição das letras pela usura do chumbo após tantos anos de uso. Por exemplo, a cabecinha do a como testa partida ao meio, ou o x que parecia querer imitar o y. Imperfeições que eram sinais, manchas de sublime humanidade na obra que acabara de escrever. «Breves imperfeições para realçar um sublime amor». Anotou-o a frase no canto de uma página. Não se esqueceria de a usar quando chegassem as entrevistas que lhe dariam o merecido reconhecimento.
Caminhou até ao quarto pensando no sucesso e no modo como iria lidar com ele. Nada que o preocupasse verdadeiramente. Aquela escrita sofrida não o impedira de se preparar para o êxito. Antecipava mesmo a amargura que o sucesso transporta consigo. Tudo escrito nas estrelas com esse mesmo chumbo, cansando mas indelével, dos caracteres imperfeitos: fortuna e perda, sorte e azar, fita bicolor correndo na velha Remington, continuamente batida até que a tinta se esgote. Que outra coisa pode contar mais que a oscilação do eterno pêndulo? Que virtude acima da capacidade de descrever o encanto que nos arrebata e a tragédia que nos destrói? A tinta espirrada no papel, alinhando palavras letra a letra, até ao momento em que a magia se suspende e o chumbo bate no papel sem o imprimir. Também aí corpo e máquina como um só. A dor dos momentos vazios em que também ele ficava em branco, exactamente como o papel correndo na pesada Remington sem fita. Era nessas ocasiões, nesse mergulho no imenso deserto branco, que mais precisava dela. Da sua voz e do seu olhar. Palavra e gesto numa harmonia que o tranquilizava quando lhe dizia: «As palavras vão continuar a crescer. Não te inquietes. Por vezes há momentos em que tudo morre para logo renascer mais forte». Só mesmo ela poderia dizer algo que se ajustava de forma tão perfeita ao seu impúdico desejo de querer ser outro a cada dia. Morte e renascimento, ciclo perpétuo de mil vidas atravessadas numa só, articuladas todas elas pelo ritmo das palavras que flúem e se retraem.
Deitou-se ao lado da mulher com vontade de a abanar ternamente para lhe contar que finalmente acabara. Que a fiel Remington escrevera as derradeiras letras e que aquele «FIM» batido com raiva era um compromisso de mudança. Dizer-lhe que ele próprio se esgotara e sabia que a esgotara a ela, mas que agora, fim de ciclo, tudo recomeçaria. Morte e renascimento. Quis acordá-la e falar-lhe de tudo isto, mostrar-lhe como o horizonte se desanuviara e enchera de promessas. Tocou-a levemente, quase a medo, e achou-a fria, distante, quase sopro gélido saindo daquele corpo em profundo repouso. Corpo exaurido, gasto, consumido no desvairado processo de traduzir na palavra o louco amor que os unia. Fora isso mesmo que ele fizera: em cada tecla batida na velha máquina, em cada palavra composta, um pedaço daquele amor. Súplicas, desejos, esperanças, mesmo os beijos que ficaram suspensos entre os lábios e o papel. Aquele amontoado de folhas dactilografadas era a sua obra e a alma dela.
Sempre soube o risco que corria, mas haverá outra forma de mostrar o amor a quem nunca o viveu? O amor feito palavra, não o retrato falado de um amor. Uma essência arrancada gota a gota do mais profundo esconderijo do amante para deleite e instrução dos demais. Párias, desapaixonados, infiéis, futuros amantes… tanta gente esperando a sua obra! Ali estava ela – e o homem, de novo de pé, punha a sua mão cansada sobre as folhas como se avaliasse o resultado do empreendimento. «O mistério da transmutação», sussurrou repetidamente. O corpo e a alma de tal forma vertidos para o papel que bastaria amassá-lo para dele escorrerem mel e lágrimas. Beleza e sofrimento, criação e morte.
Este foi o momento preciso e irrepetível em que o homem percebeu a perda. Tocou no ombro da mulher e não sentiu nem o calor que desejava nem o frio que temia. Apenas uma moleza sem vida, invólucro vazio testemunhando a perfeição da sua obra. Tinham sido os seus dedos a transformar aquela vida em palavras ditadas febrilmente à velha Remington. Gota a gota, quase sem dor, conseguira aprisionar na escrita toda a alma dela. Não o sangue mas a alma - invisível, sem substância, pingando a cada batida das teclas, com ela se esvaindo o amor mas apenas para renascer num lugar sem tempo, finalmente eternizado em palavras vivas.
O homem retirou a mão do ombro da mulher e colou-se a ela. Sentia agora um frio tão intenso como se abraçasse uma estátua de gelo. «O mistério da transmutação», repetiu. «Ao mistério da transmutação esta morte por expiar». Uma coisa valendo a outra. À honra o castigo; ao assombro de quem lê a dor de quem escreve. Deixando a mulher, o homem voltou à máquina de escrever. Acertou o papel branco no cilindro e estalou os dedos. Um prefácio! Sim, um bom prefácio poderia redimi-lo. Sorriu ao escrever. Sabia que bastaria uma parte da sua alma vertida no papel para apaziguar a justa censura das almas alheias.


Gian Lorenzo Bernini

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A estranha vida das palavras

René Magritte




Desde que Ulisses a si próprio se baptizou «Ninguém», dessa forma iludindo Polifemo e os demais ciclopes, que as palavras parecem condenadas a ter tanto de engano quanto de virtude. A desgraça do pobre Polifemo, com o único olho vazado por um barrote, exclamando que fora Ninguém quem lhe fizera mal, foi a sorte de Ulisses e dos companheiros, que dessa forma escaparam ao monstro voraz que os guardava para uma próxima refeição.
Não vivemos senão na palavra e pela palavra e não apenas porque é através dela que comunicamos. Há algo mais na nossa relação com elas: são as palavras que nos dão o entendimento do mundo em que vivemos. Quem somos e o que somos, o que são os outros para nós, que mundo é este que nos cerca e que sentido lhe damos, que sonhos podemos ter e quais os desejos que nos estão vedados. Tudo isto e mais ainda está contido no universo da palavra. Sem que disso tenhamos clara consciência, as palavras nascem e extinguem-se, adquirem novos sentidos e conotações, aplicam-se a objectos imprevistos e definem novos campos de significação. Estas mudanças podemos até senti-las e percebe-las mas o que quase sempre acontece é que vemos nelas apenas a dinâmica da comunicação e não o processo de construção do mundo.
Isto que digo é fácil de perceber olhando o modo como certos conceitos migram de umas para outras áreas e as colonizam. Veja-se como o vocabulário militar, estruturado em torno do conceito de estratégia, se tornou decisivo no discurso político e económico, ou seja, nos lugares simbólicos (e práticos) de explicação e justificação do mundo. Basta folhear um livro de gestão de empresas ou estar atento ao discurso político que todos os dias nos entra casa dentro, para perceber o argumento. Esta colonização do vocabulário militar ensina-nos o valor da táctica para vencer nesse campo de batalha, que é, afinal, o nosso enorme mundo, que devemos ver fragmentado entre aliados e adversários.
Nem sempre, porém, esta migração de conceitos deve ser vista sob este prisma um tanto ou quanto maniqueísta. Em alguns casos essa migração é simplesmente ridícula. Juro que já ouvi um relator de um desafio de futebol dizer que se “abriu uma janela de oportunidade” ao ponta-de-lança e que foi assim que ele fez golo! A moda, que torna certas palavras vibrantes e indispensáveis em certos momentos e as remete ao esquecimento noutras ocasiões, faz também parte da estranha vida das palavras. A moda e uma valorização simbólica profundamente contingente, que tanto pode favorecer a mais singela das simplificações como apelar ao mais retumbante dos excessos prosódicos.
Esta dupla face da palavra remete para uma dimensão propriamente mágica. Não brinco: é mesmo mágica! Um sim ou um não podem modificar tudo na vida de uma pessoa. Pode um sim significar a vida e um não a morte. Ou vice-versa, o que vai dar ao mesmo. Assim foi com Giordano Bruno e com Galileu - e mesmo que séculos mais tarde o poeta tenho vindo proclamar “Tu é que sabias, Galileo Galilei...”, a verdade é que raras vezes há certezas nessa contracção tão absoluta de uma decisão. Ao contrário, quase sempre o que mais conta é o imenso universo de cor e ambiguidade que existe entre um sim e um não. É nesse sentido que falo de magia: «Diga as palavras mágicas e a sua vida mudará para sempre!». «Sim, eu abjuro o que disse antes; no que acreditei desacredito agora!» Assim se salvou Galileu e nem por isso a terra deixou de girar teimosamente em torno do sol.
Pela parte que me toca, sempre suportei mal esse peso avassalador das palavras singelas. Medo que me enfeiticem, deve ser isso. Vejo-as como um ponto falsamente destacado, um vórtice que tudo engole, espécie de aleph borgesiano que ilude quem espreita pela frincha que o revela. Será por isso que nunca cheguei a dizer o sacrosanto «sim» matrimonial? Claro que podia fazer como um amigo meu, artista plástico com mais prosápia que talento, que achou por bem substituir o sobrevalorizado «sim» por um mais sonoro «pois claro». O padre bem insistia «Deve dizer sim, aceito» e ele, teimoso, «pois claro que aceito». Daquilo não se saiu e teve o padre que dar-se por satisfeito com aquela deturpação do cânone. Mas deve ter-lhe rogado uma praga, pois meses depois estava o jovem casalinho condenado por posse e tráfico de estupefacientes. Moral da história? Não tem, é uma história imoral mas confesso que sempre gostei delas assim.
Parece-me que me desviei um pouco do que me propusera inicialmente. E daí nem tanto. Não é só pelo modo como as palavras se transformam pelo uso que lhes damos que a sua vida é estranha. Ela é-o também pela forma como decidem a nossa vida. Pelo modo como nos comprometem e nos enganam. George Steiner, num ensaio recente, pergunta-se como amará um surdo-mudo. Como amará alguém que não foi tocado por essa magia da palavra dita e escutada? Talvez a pergunta seja irrelevante e também o silêncio, essa ausência de expressão mas não de sentimento, faça, afinal, parte desse estranho mundo das palavras a que prometo voltar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

A nova ordem mundial do desejo!!

Balthus

Dizem-me que a convulsão e o arrebatamento dos corpos e dos instintos são próprios dos grandes finais. Asseguram-me que à morte dos grandes impérios sempre se associou uma espécie de falência de valores e certezas e que disso resultam múltiplas consequências. A ser assim, o declínio do império americano (abençoado seja o declínio, não o império…) será inevitavelmente acompanhado por uma série de desastres & catástrofes & bíblicas punições mas também por uma espécie de reinvenção do que somos através dos excessos. Dizendo de outro modo: para lá da perda do carro, da casa e da reforma, adivinha-se o regresso de algumas das extravagâncias que assinalaram a debacle de antigos impérios. Para ser ainda mais claro: podemos perder tudo o que disse e mais ainda, mas apaziguaremos a desgraça em orgias de proporções cósmicas! Dirão os mais apressados: lá está ele a confundir os seus mais destravados desejos com a dura realidade histórica! Juro que não. Desde logo porque falo de orgia em sentido amplo, como, aliás, teria que ser, já que lhe atribuo essa proporção cósmica. Mas a certeza de que não me engano reside noutro detalhe: é que esse estado orgástico há muito que começou e a ele, já hoje, poucos de nós escapamos.
Podia armar-me em chato e falar das orgias consumistas e de como o mundo inteiro se verga à sua lógica e despudor. Porém, como nesta conversa convém que o pé não vá além do chinelo, focar-me-ei nessa convulsão de corpos e desejos a que aludi (grande surpresa, não é?!). Habituado ao empírico por dever de ofício, não quero falar aereamente nem fazer de ideias superficiais matéria de tese. Ater-me-ei, rigorosamente, ao que observo da janela em que me debruço. A minha amiga Sofia confidenciava-me há dias o seu desejo de viver um amor simples. Olhei-a com espanto. Prisioneira habitual de indecisos amores teria ela encontrado a Verdadeira Luz? Precipitado como sou, pensei logo na velha fantasia de um amor e uma cabana, ou então, mais prosaicamente, nela e no seu rapaz, mão com mão frente à lareira, olhando na TV, embevecidos, a novela da moda ou uma comédia romântica. Do alto do seu metro e oitenta (saltos incluídos), olhos verdes e levemente estrábicos arregalados, depressa me esclareceu. Que não era nada disso. Que um amor simples podia incluir tudo (sublinhou o “tudo” abrindo os braços), desde que houvesse cumplicidade e partilha entre os dois. «Festarolas a três, quatro ou mais? Colchões de água e mergulhos em motéis em múltipla companhia?», perguntei eu ingenuamente. «Pois claro!», garantiu, com o olho ainda mais arregalado de genuíno espanto.
É este o meu ponto! Não há mais lugar à tranquilidade conubial de outrora. Conheço a imediata objecção: vendo bem nunca existiu essa tranquilidade, pois com uma facadinha aqui e outra ali quase sempre havia mais que dois no tálamo consagrado dos esposais. Isto é certo, mas admitam, caros leitores, que entre o que não se sabe, ou sabendo não se assume, e o que passou a fazer parte dos acordos do casal vai uma grande distância. Até que bate certo: deve ser a distância entre uma civilização no seu auge e a sua queda iminente. Há uma outra objecção de peso a que importa responder. Dir-me-ão que uma andorinha não faz a Primavera e que a Sofia é a Sofia, excelente moça a quem, eventualmente, os amores indefinidos terão toldado o sentido. Errado uma vez mais. Basta a gente passarinhar pela net, visitar sites de encontros ou conversar com desconhecidos para percebermos que a sinistra mancha do delicioso pecado alastra desgovernada. Bem sei que convém distinguir entre fantasia e realidade, mas o certo é que bastam dois minutos de conversa para que as todas as possibilidades eróticas menos convencionais se soltem no discurso. «Ménage a trois, já experimentaste?», «Clube de swing, já foste?», «Acreditas que a minha última queca foi numa cabina telefónica em plena Baixa?» Juro que é este o tom dominante, de tal forma que só nos resta proclamar o fim de império e brindar ao que aí vem.


Balthus


A esta sede de experimentação (leia-se vontade de rebaldaria…) associa-se uma logística cada vez mais sofisticada. A Sofia, ela mesma, já mostrou interesse numa máquina cheia de correias e alavancas que um amigo meu inventou. Mas também aqui não é só ela. Haverá ainda quem use um simples preservativo convencional? Já não! Agora têm que ser estriados, coloridos, com sabores, vibrantes, comichosos… eu sei lá! Também os consoladores nunca estiveram tão na berra. Vendem-se como pãezinhos e não há ninguém que se possa lamentar de não encontrar um a seu gosto – tamanho, forma, cor e minudência técnica adequada à fantasia de cada um/a. Toda a gente pode realizar fantasias pagando pouco. Ou nada. Chega a ser preocupante para quem gosta de coisas simples. Por exemplo, atreva-se alguma miss a ir para um primeiro encontro com uma daquelas cuecas confortáveis, de algodão e gola alta! Tenho a impressão que o parceiro, obnubilado pelos fantasiosos tempos que vivemos, a confundirá com alguma madre abadessa e fugirá dali a sete pés!
Poremos fim ao império ianque celebrando essa tal orgia de proporções cósmicas. Fim de um ciclo e nascimento do outro. As filosofias orientais não andam assim tão longe deste enunciado, só que dispensam os acessórios, os motéis e a internet. Seja como for, há-de ser a energia libertada por tão participado processo que nos redimirá. No novo ciclo logo virão causticas regras de contenção e pudor. Por isso, aproveitemos agora que o tempo urge e sempre ficaremos com a medalha de bons revolucionários para mostrar aos netinhos!

Balthus

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Jogo duplo

René Magritte



Apertou o papel na mão fechada até sentir que os vincos lhe magoavam a carne e só quando se assegurou de que ninguém a olhava ou percebera o seu gesto, se atreveu a lê-lo. «Estarei no bar Gabriel e os Anjos hoje às 11 horas. Se fores capaz de me identificar, serei teu esta noite. Leva as asas para voarmos juntos». Só isto, nada mais no pedaço de papel cuidadosamente dobrado que encontrara ali, entalado na almofada daquela cadeira anónima da pastelaria onde ia cada manhã.
Era uma daquelas mulheres discretas, cuja beleza jamais se revela ao primeiro olhar. Uma daquelas belezas escondidas e reservadas, terreno conquistado e colonizado pelo companheiro de muitos anos. Um daqueles casos em que a beleza dos começos se perde irremediavelmente, da mesma forma inevitável que as rugas substituem a macieza da pele ou os cabelos brancos roubam o brilho ao cabelo com que atravessamos metade da vida. Esta mulher estava no ponto exacto em que tais efeitos se tornam uma realidade inescapável. Sem ter consciência disso, estava num lugar de fronteira, balouçava na linha invisível que separa redenção e perda – lugares tão difusos e cambiantes que raramente temos a certeza de qual o lado da fronteira que cabe a um e a outro.
Ela, que sempre fora fiel e feliz com o amor que escolhera, escondeu o papel entre as mãos unidas e levou-as à altura do peito quase com ternura. Demorou alguns segundos aquele pasmo melancólico. Quase de imediato se sentiu ridícula e desabou numa gargalhada nervosa. Como pudera pensar, sequer por momentos, que aquele convite lhe era dirigido? Sabia que havia gente que se divertia assim. Pelo menos imaginava que pudesse haver. Um papel sem destinatário e sem verdadeiro conteúdo! Sempre gostaria de saber o que sucederia se alguém respondesse ao convite. E se ela o fizesse? Encontraria alguém rindo-se da situação? De novo se sentiu ridícula por ponderar sequer semelhante hipótese. Afinal, talvez o papel estivesse ali há dias, há semanas… Não, isso não, estava certa que não. Ontem mesmo estivera sentada naquela cadeira e conhecia bem aquele gesto, quase vício, de entalar a mão na dobra das almofadas. E se o papel fosse realmente para ela? Olhou à volta de forma mais atenta e comprometida. Àquela hora a pastelaria estava quase vazia e só os olhinhos míopes de uma gorda decotada pareciam olhá-la com interesse.
Quando no fim do dia chegou a casa, o papel estava guardado no bolso das calças, ainda tão cuidadosamente dobrado como quando o encontrara. Não o esquecera todo o dia, embora a si mesmo assegurasse que sim. Ao debruçar-se sobre o marido em busca do beijo rotineiro, colocou-lhe a mão no ombro e fez desse gesto o compromisso de esquecer toda aquela loucura inconsequente. Aquele seria um serão como todos os outros mansos serões habituais. Ou não, melhor fazer diferente. Dar-lhe o jeito de uma comemoração ou de um ritual. Porque não cozinhar para ele? Há quanto tempo o não fazia! Substituiria a falta de talento pela devoção e faria dela uma prova de afecto, testemunho inquebrantável do apaziguamento que já sentia. Levantou-se decidida e foi completamente involuntário o gesto que lhe levou a mão ao bolso. Sentiu o papel como uma brasa queimando-lhe os dedos. Nenhuma dor, mas uma espécie de chama branda e convidativa que lhe foi subindo pelo braço e se apossou do seu corpo.
«Vou ter que sair mais logo. Uma reunião inesperada. Acho que não consigo voltar cedo». Disse aquilo mas foi como se outra pessoa o tivesse dito com a sua voz. Estranha sensação de alívio e de medo, bizarra mistura que nunca experimentara. Longe do marido, sentido o coração cavalgando desembestado, voltou a ler o papel. Quanto não daria para de novo sentir o ridículo que sentira antes. Um ridículo profundo que a levasse a desdizer-se, «Afinal a reunião foi desmarcada. Fico contigo».
Saiu tensa e apressada, evitando o olhar do marido. Verdadeira executiva a caminho de uma reunião, ar duro e determinado, sem nenhuma maquilhagem que lhe disfarçasse o cansaço. Num saco discreto mas inesperado levava uma saia mais curta e umas meias de rede. Não tinha já memória da última vez as usara. Habituada a gerir uma agenda carregada, calculou tudo com precisão. Uma passagem rápida pelo ginásio fez dela outra mulher. Descobriu com surpresa que o seu corpo guardava ainda a virtude da sedução. Eram as mesmas formas, apenas o tempo as enquistara sem que ele alguma vez o percebesse. Gostou da sensação de reencontrar a mulher que fora. O sorriso denunciava a alegria da descoberta de uma parte esquecida de si.
Entrou no bar às onze horas. Fez questão desse rigor quase maníaco que a tornara notada na empresa. Empurrava-a a vontade de acabar com tudo aquilo rapidamente, rejeitando, ao mesmo tempo, a responsabilidade de algum eventual equívoco. Se o convite era para as onze horas, ali estava ela, disposta a procurar de peito aberto quem a convidara. As cartas estavam na mesa e se havia jogo ela queria jogá-lo até ao fim. Não precisou procurar muito. Ali estava ele, numa mesa de canto, debaixo de um espelho oval emoldurado em talha dourada. Em momento algum hesitou ou teve dúvida. A forma como os olhares se cruzaram revelou que também ele percebera o acordo e que as palavras eram dispensáveis.
Amaram-se no motel mais próximo e as palavras apenas rebentaram no momento em que os dois corpos se fundiram e abrasaram. Havia em tudo aquilo uma pressa furiosa, um tesão que parecia ter ficado guardado durante anos e agora ansiava por ser consumido numa chama súbita e deslumbrante. Ficaram calados depois. O corpo do homem ofegante sobre o dela, os dedos entrelaçados de encontro às coxas tensas, que relaxavam com espasmos súbitos e incontrolados. Mais tarde saíram do motel separados, cada um voltando devagar à vida serena a que estavam habituados. Haviam de se encontrar em casa e, então sim, trocariam as palavras banais que sempre usavam para planificar o dia seguinte.

sábado, 18 de outubro de 2008

Com balões e pipocas nos trocam as voltas...




Vivemos tempos estranhos. Não o digo apenas pela crise financeira ou pelos tresloucados actos que a ela conduziram. Digo-o por tudo o que nos vai cercando e conduzindo a nossa vida. Como se fosse uma segunda pele, vestimo-nos com esta capa feita de sedução e conforto, apegamo-nos a ela como se não a pudéssemos largar e por aí vamos, tão felizes quanto ligeiros, caminho de algum buraco ou abismo que adiante nos espera. Bem sei que sendo tantos os convertidos não há buraco ou abismo que nos engula. Não caberíamos nele!
Seja como for, as circunstâncias actuais levam já os prudentes a apontar o dedo e a fazer notar que talvez a capa não seja de arminho ou, se o é, talvez não tenhamos condições para verdadeiramente a ela nos enrolarmos. Dito de outra forma, deve ser hora de reajustarmos a relação entre necessidades e desejos. A ideia que foi motor fiel da nossa vida desde o final da Guerra parece ter-se esgotado. Consumir mais, sempre mais, inventar continuamente novas e imperiosas necessidades, embarcar num contínuo crescimento económico, vender a todos férias tropicais e automóveis topo de gama, esse sonho pueril de criança mimada, se não acabou de vez levou um forte abanão. Cá estaremos todos para ver que novos sonhos inventarão para nós. Sim, porque este balão que de repente esvaziou há-de de novo ser enchido para nosso deleite e paz de alma.
Apesar de apenas gostar medianamente de crianças, interessa-me o que é pueril. É um interesse casto, garanto. Uma espécie de olhar cínico para todos nós. Desta vez - nem sempre foi assim na longa história do Homem - deram-nos a volta fazendo de nós eternas crianças. Foi esse o ar com que enchemos o balão. Lembram-se daquela velha história, que Lucas nos conta no Evangelho, da tentação de Jesus pelo Diabo? «Dar-te-ei todo este poder e a sua glória (...) Se tu me adorares tudo será teu». Acho que foi mais ou menos isso que nos sucedeu. Só que Jesus era teso e disse logo, de dedo em riste, «Vai-te Satanás!», enquanto nós, que somos moles e tendencialmente obesos, aceitámos a dádiva. E assim passámos a vestir Prada, Gucci e Doce&Banana ou lá como se chama. Enfim, a consumir cada vez mais como se disso dependesse a própria vida e não pudesse haver felicidade se não dessa forma.
Tudo isto que convosco desabafo foi despoletado, imaginem só, por essa mania indizível de devorar baldes de pipocas no cinema. É apenas uma metáfora, de acordo, mas é uma boa metáfora para essa infantilização que tomou conta das nossas vidas. Homens barbados e pais de filhos, mulheres decididas e independentes, rilhando pipocas furiosamente para desconforto de quem só foi ver cinema, não pode ser normal. Ir ao cinema para pensar? Para entrar num universo imaginado por outra pessoa? Para se descobrir nas personagens que evoluem no ecrã? Nada disso, meu parvo! Tens é que levar um balde de pipocas e outro de Coca-Cola, comprar os produtos alusivos ao filme e sair como entraste: como um desejo furioso de puxar do cartão de crédito e comprar o primeiro sonho que se atravessar no teu caminho. E olhem que a metáfora é mesmo boa, pois de pipoca em pipoca, com aqueles baldes tamanho XL, já não há quem chegue ao fim e essa é a nossa situação actual: gordos como estamos não cabemos no abismo que se abre à nossa frente e ficamos entalados, exactamente como a mão papuda que procura chegar ao final do balde não por vontade mas por vício.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A Praxe Revisitada

Edvard Munch


No ano passado escrevi sobre a praxe e agora que ela nos revisita com a exuberância costumeira, decidi voltar ao tema. Do que escrevi no ano passado - e que está aí abaixo blogado para quem tiver nisso alguma curiosidade – não retiraria nada de essencial. Assim sendo, perguntarão, porquê voltar à questão? Por duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar por um impulso pedagógico, vício d’ofício, se quiserem. Quando os pedagogos eram um pouco menos pedabobos, costumava dizer-se que a repetição era a mãe de toda a pedagogia! Pois então aí está a primeira razão: repetir cansa, mas mesmo que efeito não tenha, alivia quem repete.
A segunda razão é de outra natureza. Prende-se com uma ideia que circula e vai fazendo caminho: «Este ano a praxe está diferente!» Para os defensores desta tese, a diferença notar-se ia numa maior brandura e tolerância e num vozeado menos parvo e grosseiro. Um novo caminho que se abre; um amanhã que canta; uma academia mais academia desponta, tímida mas segura, no meio do tumulto. Não são poucos os subscritores destas ideias, o que se calhar nem é mau, pois gente de fé é o que mais falta nos faz nos dias que vão correndo. Já vi títulos de jornal garantindo a mudança e tenho colegas que a asseveram com toda a seriedade e convicção. Até a reitoria contribuiu para o jubiloso clima quando, finalmente, se decidiu a mexer uma palha – foi só uma palhinha, é verdade, mas mexeu-a!
Para ser justo, devo reconhecer que eu próprio tenho ouvido menos urros e uivos, talvez menos palavrões e alarvidades. Ora, mais palavrão menos palavrão, o que é que isso vem a ser para as sólidas gentes do norte?! Fosse eu poeta ou intelectual metido a besta e faria a pergunta sacramental: «Não estaremos nós a tomar a nuvem por Juno?». Ou então, para gente menos versada em mitologia clássica, será que não são demasiados foguetes para tão pouca festa? Certo é que a reitoria fez peito: não tolera abusos e faz de cada homem e mulher, docente ou funcionário, impolutos vigilantes das regras (mas que regras?) que devem reger a praxe. Desconheço se ouve denúncia de abusos e, se as houve, que consequências terão. É razoável pensar que poucas ou nenhumas. Mas em verdade vos digo que esse nem é o ponto essencial.
Nada do que verdadeiramente conta mudou na praxe. A sua estética continua a ser exactamente a mesma e deve aqui ficar claro que ela é em si mesmo irreformável. Extinguir a lógica de submissão cega e acrítica que formata a praxe significaria, como é bom de ver, matar aquele ritual circense de enxovalho tal como o conhecemos. É verdade que os tempos correm favoráveis a essa estética sinistra, do mesmo modo que tempos houve em o sentido dominante era o contrário. Já se sabe, mudam-se os tempos…
A praxe é um reflexo de todos nós e do modo como aceitamos viver, mas é também uma lição e um ensinamento. Provavelmente uma lição mais poderosa e duradoura do que todas quantas nós consigamos transmitir aos nossos alunos. Uma lição que pode sintetizar-se no belo título que Fassbinder escolheu para um filme: «O Direito do Mais Forte à Liberdade». É ou não é esse o princípio fundamental para uma vida cordata e de sucesso? Aprender a obedecer… e aproveitar para mandar sempre que a ocasião se proporcione. Não importa em quem mandamos nem porque o fazemos; o que importa é o poder do mando e a vertigem de ser obedecido. Por isso a praxe não é um caso de polícia, é muito mais do que isso. E já que falei de cinema com outro filme acabo. Falo de Bergman e d’«O Ovo da Serpente», obra que nos mostra como o essencial do terrível mal que viria a ser o nazismo se mostrava já, muito anos antes, de uma forma tão mansa que quase parecia benigna. Talvez seja isso que anda por aí à solta, não só na praxe, bem entendido, mas em tantas coisas que vemos disfarçadas e escondidas pela fina membrana de um ovo em gestação.