terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Brincadeira de criança


Diego Rivera


Como sempre sucedia, entrei no quarto como num santuário. Fora ali que passara os melhores momentos da minha vida, infinitas tardes de pura felicidade, memórias que não posso nem quero apagar. Eu e o meu avô, sempre os dois, parceiros inseparáveis, companheiros de brincadeiras, cúmplices absolutos que a diferença de idade nunca colocou em causa. Como pude sobreviver àquela morte, à enorme perda que de tão esperada se tornou irreal? Nada há de que me arrependa. Cumpri a parte que me coube, e esta parte, tão dolorosa quanto feliz, não pode ser mais que conservar viva a perfeição do passado. Sei que não volta, esse passado. Não sou tolo, bem sei que em tudo o que faço pesam, em partes iguais, a ilusão e a memória. E isso que me importa? Neste quarto em que sempre me recolho, mantive prisioneiras as sombras da minha infância. Entro nele e volto ao que fui. Ao que fomos. Só que agora é um lugar apenas meu, no qual ninguém mais cabe ou virá alguma vez a caber. Um lugar onde, sempre que posso e me deixam, reencontro o meu velho companheiro de brincadeiras.
Era exactamente assim que nos sentávamos, à maneira dos índios, como garantia o meu avô, pernas cruzadas e mãos sobre os joelhos, um frente ao outro, sorrisos e olhares cruzados enquanto decidíamos o que fazer. Esta caixa em folha-de-flandres, com os desenhos de cores esbatidas pelo tempo, já estava aqui naquela altura. Claro que tive que lhe mudar o conteúdo, mas essa foi apenas uma operação indispensável para que tudo pudesse aproximar-se ao que sempre fora. Há de novo ilusão nisto que digo, bem o sei, mas que seria de mim sem ela, sem a força e o ânimo que só a fantasia me dá? Abro a caixa e faço correr pelos dedos as peças alvacentas. De cada vez que lhes toco parecem-me mais leves, como fossem secando por dentro, dessa forma lhe aprimorando a forma, talvez adequando-a à função que lhes atribuo.
Espalho a meus pés, no oleado gasto e já sem cor, as peças redondas, anguladas por espigões ratados mas ainda nítidos. Devo agora, com duas peças compridas e levemente curvas, agarrar as redondas e devolve-las à caixa que as guarda. São essas as regras: claras e precisas como sempre foi nosso hábito. Não sei que técnica usaria se fosse ainda criança, de que forma me guiariam as palavras de meu avô, mas agora colo-as as peças compridas aos dedos como se fosse dois pauzinhos de um restaurante chinês. Faço delas uma extensão dos meus dedos, dou-lhes um jeito de pinça, de forma a fazer entrar uma delas no buraco irregular das peças redondas e só quando a sinto bem presa é que a levanto e arrumo na caixa. Jogo nenhum se faz sem regras e este, criação minha em intenção do meu velho companheiro, não poderia ser diferente. Regra fundamental: não posso bulir, por pouco que seja, em peça diferente daquela que pretendo capturar. O mínimo erro nesta condição obrigar-me-ia a recomeçar tudo do início. A concentração é essencial. Concentração e cautela, como, estou certo, o meu avô me recomendaria, caso fosse outra a condição da sua participação neste jogo. Mãos firmes, gestos precisos, associados à falsa lentidão de um felino.
Gradualmente o jogo torna-se mais fácil. Conforme vou avançando e deslindando o acidental emaranhado de peças, como se desatasse os nós de uma confusa meada de lã colorida, define-se com limpidez o caminho a prosseguir. Porém, a clarificação do desenho e da tarefa cobra fatalmente o seu preço. A mão começa a suar e um torpor ingovernável ameaça fazer-me perder a concentração. As peças, rígidas pinças deformadas, colam-se aos dedos húmidos e chegam a desobedecer-me até nos mais fáceis movimentos. E depois, para lá disso, sempre me acontece o mesmo. Devia prevê-lo e evitá-lo, mas nunca consigo. Sempre deixo para o fim o mais árduo emaranhado de peças, como se à vista da meta final fizesse questão de enfrentar a enormidade de uma escarpa que importa vencer. Fecho os olhos procurando reencontrar a concentração. Sei que encontrei e venci piores desafios. Vendo bem, não é nada de mais o que me resta. Quatro peças singulares, encavalitadas umas nas outras, fundidos os ângulos agudos com os buracos que as abrem a meio. Nessa evidente metáfora que é a conjunção do côncavo com o convexo, reside a maior das dificuldades. A minha mão treme agora visivelmente no esforço de desmontar o novelo. Recuo, respiro fundo e volto a tentar, desta vez de forma ainda mais decidida, mas aconteceu o desastre que temia. Não foi preciso mais que um pequeno toque, uma coisa de nada, e todo o montículo se abateu quase sem ruído.
Que diria meu avô? Quase posso ouvi-lo, recomendando paciência e determinação. Sábios ensinamentos, esse como outros, e é com eles na mente que volto a lançar as peças redondas disposto a recomeçar o jogo. Paciência sem determinação é moleza, mas da determinação sem paciência também não resulta nada de bom. Era assim que meu avô falava, com a diferença de usar palavras antigas e sábias, palavras que não esqueci, posso jurá-lo, mas que nem sempre me ocorrem. Como agora mesmo sucede. Tampouco é isso que neste momento importa. O que a mim mesmo devo exigir é absoluta concentração. O cumprimento desta tarefa a isso obriga. Recomeço, portanto, a juntar peça atrás de peça e teria, sem dúvida, chegado ao fim, não fosse ouvir de repente a chave entrando na fechadura. É sempre desta forma que me apercebo da chegada da minha esposa, e ela, por muito amor que lhe tenha, não tem lugar neste mundo que é só meu. Sem pressa, sabendo com precisão de que tempo disponho, pego em todos os ossinhos do meu avô e arrumo-os na velha caixa de folha lacada. Só depois de me assegurar de que nada ficou fora do seu exacto lugar, é que saio do quarto, sorridente e apaixonado, para saudar a minha amada esposa.