segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

(Ir) responsabilidade cidadã

George Grosz



Quando a crise se manifestou em toda a sua exuberância terá parecido a alguns que o mundo em que sempre tinham acreditado se desmoronava de um sopro. Chegaram a ser ouvidas com atenção solenes vozes que defendiam que estava na hora de arrepiar caminho. Era necessário, diziam, que reavaliássemos as nossas necessidades e aprendêssemos a viver de forma mais contida. Isto tinha um significado mais profundo do que à partida pode parecer. A economia dos países desenvolvidos e, ainda mais amplamente, o nosso modo de vida, assentou, sobretudo desde o pós-guerra, num modelo muito claro e fácil de entender: as necessidades são ilimitadas por definição e os recursos, que, idealmente, devem ser sempre crescentes, servem para satisfazer essas necessidades constantemente inventadas e descobertas. O princípio da obsolescência, técnica e simbólica, dos bens de consumo, tem governado esta máquina bem oleada criada pelo sistema capitalista. Para o seu funcionamento não basta, de facto, querermos sempre adquirir novos produtos, é importante, também, que os bens que já possuímos deixem de servir, seja porque se estragaram seja porque passaram de moda. Isto funcionou durante décadas, ainda que algumas crises pontuais tenham, por vezes, ameaçado o modelo.

Desde há muito que variada gente anda à espera da tal crise, aquela que não deixará pedra sobre pedra. A aparente virulência da crise que vivemos levou algumas almas a acreditar que seria este o momento há tanto aguardado e foram essas as vozes que se fizeram ouvir e que chegaram a ser escutadas. Foi sol de pouca dura. Os liberais depressa recuperam do pasmo e atordoamento em que tinham caído: o modelo, que tantas alegrias lhes tinha proporcionado, possuía, afinal, todas as condições para se regenerar. Habituados a certezas, depressa descobriram que só eles eram capazes de encontrar as boas soluções. Foram-se, por isso, chegando à boca de cena e é lá, na linha da frente, que os encontramos, sérios e reservados, como se o mundo inteiro lhes devesse os milhões que perderam não se sabe como.

Do que não há dúvida é que nos fora nacionais e internacionais é dentro do modelo que se discutem as soluções. Uma das descobertas que fizeram é bem curiosa: em vez de se discutir se estamos a consumir de uma forma absurda e excessiva deve é promover-se o consumo! E como diabo se faz isso se a malta não tem dinheiro? Fácil: o governo financia! O que importa é injectar dinheiro no sistema para que o possamos gastar, de preferência do modo mais irresponsável possível. Basta que o governo diminua os impostos ou até que entregue uma espécie de cheque às famílias. Nada de novo noutras paragens, se bem que a malta por cá chegue a estranhar essa ameaça de generosidade. Todavia, os atentos e perspicazes liberais já detectaram neste plano um problema que os aflige. É que os cidadãos, irresponsáveis como o caraças, são bem capazes de desvirtuar a medida: em vez de se irem meter no Shopping mais próximo torrando a benesse em prendas e vinho, é capaz de lhes dar para pagar dívidas ou, pior ainda, enfiarem o dinheiro debaixo do colchão, desconfiados como andam dos bancos e dos banqueiros.

Como o meu paizinho, que Deus tenha, sempre me ensinou a ajudar os outros, deixo aqui um alvitre. Espécie de ovo de Colombo para uma nova era de consumo. O governo, em vez de diminuir impostos ou dar dinheiro vivo, gratificava as famílias contribuintes com géneros! Era só aproveitar o pretexto e a embalagem natalícia. Deixo uma lista singela, sabendo que é infinito o mundo de possibilidades que assim se abre.



George Grosz



Lista de ofertas do nosso excelente governo às famílias que governa:

Meio peru
2 kg. de bacalhau (cura amarela)
Um bolo-rei (sem brinde mas com fava)
Uma dúzia de ovos (para as filhoses)
Uma couve tronchuda

Claro que as prendinhas não podem ficar esquecidas!


Havendo criancinhas na família:
Uma barbie (fadista)
Um Noddy (ambos de contrafacção, pois há que ajudar a economia clandestina)

Havendo adolescentes na família:
Um curso de formação para o desemprego (para ele)
Um jogo de bolinhas chinesas para prática de pompoarismo (para ela)

Havendo idosos:
Uma rosa (socialista) de plástico (para ela)
Um pin com o rosto garboso do nosso querido líder, eng. Sócrates (para ele)

E pronto, ficava a festa feita. Incrementava-se o consumo, evitava-se a irresponsabilidade da poupança e adiávamos o trambolhão, esse tal Armagedão que há-de vir, por mais uns tempos.

1 comentário:

Ana Paula Mata disse...
Este comentário foi removido pelo autor.