No ano passado escrevi sobre a praxe e agora que ela nos revisita com a exuberância costumeira, decidi voltar ao tema. Do que escrevi no ano passado - e que está aí abaixo blogado para quem tiver nisso alguma curiosidade – não retiraria nada de essencial. Assim sendo, perguntarão, porquê voltar à questão? Por duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar por um impulso pedagógico, vício d’ofício, se quiserem. Quando os pedagogos eram um pouco menos pedabobos, costumava dizer-se que a repetição era a mãe de toda a pedagogia! Pois então aí está a primeira razão: repetir cansa, mas mesmo que efeito não tenha, alivia quem repete.
A segunda razão é de outra natureza. Prende-se com uma ideia que circula e vai fazendo caminho: «Este ano a praxe está diferente!» Para os defensores desta tese, a diferença notar-se ia numa maior brandura e tolerância e num vozeado menos parvo e grosseiro. Um novo caminho que se abre; um amanhã que canta; uma academia mais academia desponta, tímida mas segura, no meio do tumulto. Não são poucos os subscritores destas ideias, o que se calhar nem é mau, pois gente de fé é o que mais falta nos faz nos dias que vão correndo. Já vi títulos de jornal garantindo a mudança e tenho colegas que a asseveram com toda a seriedade e convicção. Até a reitoria contribuiu para o jubiloso clima quando, finalmente, se decidiu a mexer uma palha – foi só uma palhinha, é verdade, mas mexeu-a!
Para ser justo, devo reconhecer que eu próprio tenho ouvido menos urros e uivos, talvez menos palavrões e alarvidades. Ora, mais palavrão menos palavrão, o que é que isso vem a ser para as sólidas gentes do norte?! Fosse eu poeta ou intelectual metido a besta e faria a pergunta sacramental: «Não estaremos nós a tomar a nuvem por Juno?». Ou então, para gente menos versada em mitologia clássica, será que não são demasiados foguetes para tão pouca festa? Certo é que a reitoria fez peito: não tolera abusos e faz de cada homem e mulher, docente ou funcionário, impolutos vigilantes das regras (mas que regras?) que devem reger a praxe. Desconheço se ouve denúncia de abusos e, se as houve, que consequências terão. É razoável pensar que poucas ou nenhumas. Mas em verdade vos digo que esse nem é o ponto essencial.
Nada do que verdadeiramente conta mudou na praxe. A sua estética continua a ser exactamente a mesma e deve aqui ficar claro que ela é em si mesmo irreformável. Extinguir a lógica de submissão cega e acrítica que formata a praxe significaria, como é bom de ver, matar aquele ritual circense de enxovalho tal como o conhecemos. É verdade que os tempos correm favoráveis a essa estética sinistra, do mesmo modo que tempos houve em o sentido dominante era o contrário. Já se sabe, mudam-se os tempos…
A praxe é um reflexo de todos nós e do modo como aceitamos viver, mas é também uma lição e um ensinamento. Provavelmente uma lição mais poderosa e duradoura do que todas quantas nós consigamos transmitir aos nossos alunos. Uma lição que pode sintetizar-se no belo título que Fassbinder escolheu para um filme: «O Direito do Mais Forte à Liberdade». É ou não é esse o princípio fundamental para uma vida cordata e de sucesso? Aprender a obedecer… e aproveitar para mandar sempre que a ocasião se proporcione. Não importa em quem mandamos nem porque o fazemos; o que importa é o poder do mando e a vertigem de ser obedecido. Por isso a praxe não é um caso de polícia, é muito mais do que isso. E já que falei de cinema com outro filme acabo. Falo de Bergman e d’«O Ovo da Serpente», obra que nos mostra como o essencial do terrível mal que viria a ser o nazismo se mostrava já, muito anos antes, de uma forma tão mansa que quase parecia benigna. Talvez seja isso que anda por aí à solta, não só na praxe, bem entendido, mas em tantas coisas que vemos disfarçadas e escondidas pela fina membrana de um ovo em gestação.
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