Apertou o papel na mão fechada até sentir que os vincos lhe magoavam a carne e só quando se assegurou de que ninguém a olhava ou percebera o seu gesto, se atreveu a lê-lo. «Estarei no bar Gabriel e os Anjos hoje às 11 horas. Se fores capaz de me identificar, serei teu esta noite. Leva as asas para voarmos juntos». Só isto, nada mais no pedaço de papel cuidadosamente dobrado que encontrara ali, entalado na almofada daquela cadeira anónima da pastelaria onde ia cada manhã.
Era uma daquelas mulheres discretas, cuja beleza jamais se revela ao primeiro olhar. Uma daquelas belezas escondidas e reservadas, terreno conquistado e colonizado pelo companheiro de muitos anos. Um daqueles casos em que a beleza dos começos se perde irremediavelmente, da mesma forma inevitável que as rugas substituem a macieza da pele ou os cabelos brancos roubam o brilho ao cabelo com que atravessamos metade da vida. Esta mulher estava no ponto exacto em que tais efeitos se tornam uma realidade inescapável. Sem ter consciência disso, estava num lugar de fronteira, balouçava na linha invisível que separa redenção e perda – lugares tão difusos e cambiantes que raramente temos a certeza de qual o lado da fronteira que cabe a um e a outro.
Ela, que sempre fora fiel e feliz com o amor que escolhera, escondeu o papel entre as mãos unidas e levou-as à altura do peito quase com ternura. Demorou alguns segundos aquele pasmo melancólico. Quase de imediato se sentiu ridícula e desabou numa gargalhada nervosa. Como pudera pensar, sequer por momentos, que aquele convite lhe era dirigido? Sabia que havia gente que se divertia assim. Pelo menos imaginava que pudesse haver. Um papel sem destinatário e sem verdadeiro conteúdo! Sempre gostaria de saber o que sucederia se alguém respondesse ao convite. E se ela o fizesse? Encontraria alguém rindo-se da situação? De novo se sentiu ridícula por ponderar sequer semelhante hipótese. Afinal, talvez o papel estivesse ali há dias, há semanas… Não, isso não, estava certa que não. Ontem mesmo estivera sentada naquela cadeira e conhecia bem aquele gesto, quase vício, de entalar a mão na dobra das almofadas. E se o papel fosse realmente para ela? Olhou à volta de forma mais atenta e comprometida. Àquela hora a pastelaria estava quase vazia e só os olhinhos míopes de uma gorda decotada pareciam olhá-la com interesse.
Quando no fim do dia chegou a casa, o papel estava guardado no bolso das calças, ainda tão cuidadosamente dobrado como quando o encontrara. Não o esquecera todo o dia, embora a si mesmo assegurasse que sim. Ao debruçar-se sobre o marido em busca do beijo rotineiro, colocou-lhe a mão no ombro e fez desse gesto o compromisso de esquecer toda aquela loucura inconsequente. Aquele seria um serão como todos os outros mansos serões habituais. Ou não, melhor fazer diferente. Dar-lhe o jeito de uma comemoração ou de um ritual. Porque não cozinhar para ele? Há quanto tempo o não fazia! Substituiria a falta de talento pela devoção e faria dela uma prova de afecto, testemunho inquebrantável do apaziguamento que já sentia. Levantou-se decidida e foi completamente involuntário o gesto que lhe levou a mão ao bolso. Sentiu o papel como uma brasa queimando-lhe os dedos. Nenhuma dor, mas uma espécie de chama branda e convidativa que lhe foi subindo pelo braço e se apossou do seu corpo.
«Vou ter que sair mais logo. Uma reunião inesperada. Acho que não consigo voltar cedo». Disse aquilo mas foi como se outra pessoa o tivesse dito com a sua voz. Estranha sensação de alívio e de medo, bizarra mistura que nunca experimentara. Longe do marido, sentido o coração cavalgando desembestado, voltou a ler o papel. Quanto não daria para de novo sentir o ridículo que sentira antes. Um ridículo profundo que a levasse a desdizer-se, «Afinal a reunião foi desmarcada. Fico contigo».
Saiu tensa e apressada, evitando o olhar do marido. Verdadeira executiva a caminho de uma reunião, ar duro e determinado, sem nenhuma maquilhagem que lhe disfarçasse o cansaço. Num saco discreto mas inesperado levava uma saia mais curta e umas meias de rede. Não tinha já memória da última vez as usara. Habituada a gerir uma agenda carregada, calculou tudo com precisão. Uma passagem rápida pelo ginásio fez dela outra mulher. Descobriu com surpresa que o seu corpo guardava ainda a virtude da sedução. Eram as mesmas formas, apenas o tempo as enquistara sem que ele alguma vez o percebesse. Gostou da sensação de reencontrar a mulher que fora. O sorriso denunciava a alegria da descoberta de uma parte esquecida de si.
Entrou no bar às onze horas. Fez questão desse rigor quase maníaco que a tornara notada na empresa. Empurrava-a a vontade de acabar com tudo aquilo rapidamente, rejeitando, ao mesmo tempo, a responsabilidade de algum eventual equívoco. Se o convite era para as onze horas, ali estava ela, disposta a procurar de peito aberto quem a convidara. As cartas estavam na mesa e se havia jogo ela queria jogá-lo até ao fim. Não precisou procurar muito. Ali estava ele, numa mesa de canto, debaixo de um espelho oval emoldurado em talha dourada. Em momento algum hesitou ou teve dúvida. A forma como os olhares se cruzaram revelou que também ele percebera o acordo e que as palavras eram dispensáveis.
Amaram-se no motel mais próximo e as palavras apenas rebentaram no momento em que os dois corpos se fundiram e abrasaram. Havia em tudo aquilo uma pressa furiosa, um tesão que parecia ter ficado guardado durante anos e agora ansiava por ser consumido numa chama súbita e deslumbrante. Ficaram calados depois. O corpo do homem ofegante sobre o dela, os dedos entrelaçados de encontro às coxas tensas, que relaxavam com espasmos súbitos e incontrolados. Mais tarde saíram do motel separados, cada um voltando devagar à vida serena a que estavam habituados. Haviam de se encontrar em casa e, então sim, trocariam as palavras banais que sempre usavam para planificar o dia seguinte.
Era uma daquelas mulheres discretas, cuja beleza jamais se revela ao primeiro olhar. Uma daquelas belezas escondidas e reservadas, terreno conquistado e colonizado pelo companheiro de muitos anos. Um daqueles casos em que a beleza dos começos se perde irremediavelmente, da mesma forma inevitável que as rugas substituem a macieza da pele ou os cabelos brancos roubam o brilho ao cabelo com que atravessamos metade da vida. Esta mulher estava no ponto exacto em que tais efeitos se tornam uma realidade inescapável. Sem ter consciência disso, estava num lugar de fronteira, balouçava na linha invisível que separa redenção e perda – lugares tão difusos e cambiantes que raramente temos a certeza de qual o lado da fronteira que cabe a um e a outro.
Ela, que sempre fora fiel e feliz com o amor que escolhera, escondeu o papel entre as mãos unidas e levou-as à altura do peito quase com ternura. Demorou alguns segundos aquele pasmo melancólico. Quase de imediato se sentiu ridícula e desabou numa gargalhada nervosa. Como pudera pensar, sequer por momentos, que aquele convite lhe era dirigido? Sabia que havia gente que se divertia assim. Pelo menos imaginava que pudesse haver. Um papel sem destinatário e sem verdadeiro conteúdo! Sempre gostaria de saber o que sucederia se alguém respondesse ao convite. E se ela o fizesse? Encontraria alguém rindo-se da situação? De novo se sentiu ridícula por ponderar sequer semelhante hipótese. Afinal, talvez o papel estivesse ali há dias, há semanas… Não, isso não, estava certa que não. Ontem mesmo estivera sentada naquela cadeira e conhecia bem aquele gesto, quase vício, de entalar a mão na dobra das almofadas. E se o papel fosse realmente para ela? Olhou à volta de forma mais atenta e comprometida. Àquela hora a pastelaria estava quase vazia e só os olhinhos míopes de uma gorda decotada pareciam olhá-la com interesse.
Quando no fim do dia chegou a casa, o papel estava guardado no bolso das calças, ainda tão cuidadosamente dobrado como quando o encontrara. Não o esquecera todo o dia, embora a si mesmo assegurasse que sim. Ao debruçar-se sobre o marido em busca do beijo rotineiro, colocou-lhe a mão no ombro e fez desse gesto o compromisso de esquecer toda aquela loucura inconsequente. Aquele seria um serão como todos os outros mansos serões habituais. Ou não, melhor fazer diferente. Dar-lhe o jeito de uma comemoração ou de um ritual. Porque não cozinhar para ele? Há quanto tempo o não fazia! Substituiria a falta de talento pela devoção e faria dela uma prova de afecto, testemunho inquebrantável do apaziguamento que já sentia. Levantou-se decidida e foi completamente involuntário o gesto que lhe levou a mão ao bolso. Sentiu o papel como uma brasa queimando-lhe os dedos. Nenhuma dor, mas uma espécie de chama branda e convidativa que lhe foi subindo pelo braço e se apossou do seu corpo.
«Vou ter que sair mais logo. Uma reunião inesperada. Acho que não consigo voltar cedo». Disse aquilo mas foi como se outra pessoa o tivesse dito com a sua voz. Estranha sensação de alívio e de medo, bizarra mistura que nunca experimentara. Longe do marido, sentido o coração cavalgando desembestado, voltou a ler o papel. Quanto não daria para de novo sentir o ridículo que sentira antes. Um ridículo profundo que a levasse a desdizer-se, «Afinal a reunião foi desmarcada. Fico contigo».
Saiu tensa e apressada, evitando o olhar do marido. Verdadeira executiva a caminho de uma reunião, ar duro e determinado, sem nenhuma maquilhagem que lhe disfarçasse o cansaço. Num saco discreto mas inesperado levava uma saia mais curta e umas meias de rede. Não tinha já memória da última vez as usara. Habituada a gerir uma agenda carregada, calculou tudo com precisão. Uma passagem rápida pelo ginásio fez dela outra mulher. Descobriu com surpresa que o seu corpo guardava ainda a virtude da sedução. Eram as mesmas formas, apenas o tempo as enquistara sem que ele alguma vez o percebesse. Gostou da sensação de reencontrar a mulher que fora. O sorriso denunciava a alegria da descoberta de uma parte esquecida de si.
Entrou no bar às onze horas. Fez questão desse rigor quase maníaco que a tornara notada na empresa. Empurrava-a a vontade de acabar com tudo aquilo rapidamente, rejeitando, ao mesmo tempo, a responsabilidade de algum eventual equívoco. Se o convite era para as onze horas, ali estava ela, disposta a procurar de peito aberto quem a convidara. As cartas estavam na mesa e se havia jogo ela queria jogá-lo até ao fim. Não precisou procurar muito. Ali estava ele, numa mesa de canto, debaixo de um espelho oval emoldurado em talha dourada. Em momento algum hesitou ou teve dúvida. A forma como os olhares se cruzaram revelou que também ele percebera o acordo e que as palavras eram dispensáveis.
Amaram-se no motel mais próximo e as palavras apenas rebentaram no momento em que os dois corpos se fundiram e abrasaram. Havia em tudo aquilo uma pressa furiosa, um tesão que parecia ter ficado guardado durante anos e agora ansiava por ser consumido numa chama súbita e deslumbrante. Ficaram calados depois. O corpo do homem ofegante sobre o dela, os dedos entrelaçados de encontro às coxas tensas, que relaxavam com espasmos súbitos e incontrolados. Mais tarde saíram do motel separados, cada um voltando devagar à vida serena a que estavam habituados. Haviam de se encontrar em casa e, então sim, trocariam as palavras banais que sempre usavam para planificar o dia seguinte.
2 comentários:
Alguma moralidade mediana, bacoca o fez deixar de advocar comportamentos mais licenciosos? Em todo o caso, está bem: pela surpresa! O leitor, genericamente, gosta que brinquem consigo.
Eu também gosto que brinquem comigo e olhe, estimado anónimo, nem sempre tenho essa sorte!!
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