segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

(Ir) responsabilidade cidadã

George Grosz



Quando a crise se manifestou em toda a sua exuberância terá parecido a alguns que o mundo em que sempre tinham acreditado se desmoronava de um sopro. Chegaram a ser ouvidas com atenção solenes vozes que defendiam que estava na hora de arrepiar caminho. Era necessário, diziam, que reavaliássemos as nossas necessidades e aprendêssemos a viver de forma mais contida. Isto tinha um significado mais profundo do que à partida pode parecer. A economia dos países desenvolvidos e, ainda mais amplamente, o nosso modo de vida, assentou, sobretudo desde o pós-guerra, num modelo muito claro e fácil de entender: as necessidades são ilimitadas por definição e os recursos, que, idealmente, devem ser sempre crescentes, servem para satisfazer essas necessidades constantemente inventadas e descobertas. O princípio da obsolescência, técnica e simbólica, dos bens de consumo, tem governado esta máquina bem oleada criada pelo sistema capitalista. Para o seu funcionamento não basta, de facto, querermos sempre adquirir novos produtos, é importante, também, que os bens que já possuímos deixem de servir, seja porque se estragaram seja porque passaram de moda. Isto funcionou durante décadas, ainda que algumas crises pontuais tenham, por vezes, ameaçado o modelo.

Desde há muito que variada gente anda à espera da tal crise, aquela que não deixará pedra sobre pedra. A aparente virulência da crise que vivemos levou algumas almas a acreditar que seria este o momento há tanto aguardado e foram essas as vozes que se fizeram ouvir e que chegaram a ser escutadas. Foi sol de pouca dura. Os liberais depressa recuperam do pasmo e atordoamento em que tinham caído: o modelo, que tantas alegrias lhes tinha proporcionado, possuía, afinal, todas as condições para se regenerar. Habituados a certezas, depressa descobriram que só eles eram capazes de encontrar as boas soluções. Foram-se, por isso, chegando à boca de cena e é lá, na linha da frente, que os encontramos, sérios e reservados, como se o mundo inteiro lhes devesse os milhões que perderam não se sabe como.

Do que não há dúvida é que nos fora nacionais e internacionais é dentro do modelo que se discutem as soluções. Uma das descobertas que fizeram é bem curiosa: em vez de se discutir se estamos a consumir de uma forma absurda e excessiva deve é promover-se o consumo! E como diabo se faz isso se a malta não tem dinheiro? Fácil: o governo financia! O que importa é injectar dinheiro no sistema para que o possamos gastar, de preferência do modo mais irresponsável possível. Basta que o governo diminua os impostos ou até que entregue uma espécie de cheque às famílias. Nada de novo noutras paragens, se bem que a malta por cá chegue a estranhar essa ameaça de generosidade. Todavia, os atentos e perspicazes liberais já detectaram neste plano um problema que os aflige. É que os cidadãos, irresponsáveis como o caraças, são bem capazes de desvirtuar a medida: em vez de se irem meter no Shopping mais próximo torrando a benesse em prendas e vinho, é capaz de lhes dar para pagar dívidas ou, pior ainda, enfiarem o dinheiro debaixo do colchão, desconfiados como andam dos bancos e dos banqueiros.

Como o meu paizinho, que Deus tenha, sempre me ensinou a ajudar os outros, deixo aqui um alvitre. Espécie de ovo de Colombo para uma nova era de consumo. O governo, em vez de diminuir impostos ou dar dinheiro vivo, gratificava as famílias contribuintes com géneros! Era só aproveitar o pretexto e a embalagem natalícia. Deixo uma lista singela, sabendo que é infinito o mundo de possibilidades que assim se abre.



George Grosz



Lista de ofertas do nosso excelente governo às famílias que governa:

Meio peru
2 kg. de bacalhau (cura amarela)
Um bolo-rei (sem brinde mas com fava)
Uma dúzia de ovos (para as filhoses)
Uma couve tronchuda

Claro que as prendinhas não podem ficar esquecidas!


Havendo criancinhas na família:
Uma barbie (fadista)
Um Noddy (ambos de contrafacção, pois há que ajudar a economia clandestina)

Havendo adolescentes na família:
Um curso de formação para o desemprego (para ele)
Um jogo de bolinhas chinesas para prática de pompoarismo (para ela)

Havendo idosos:
Uma rosa (socialista) de plástico (para ela)
Um pin com o rosto garboso do nosso querido líder, eng. Sócrates (para ele)

E pronto, ficava a festa feita. Incrementava-se o consumo, evitava-se a irresponsabilidade da poupança e adiávamos o trambolhão, esse tal Armagedão que há-de vir, por mais uns tempos.

sábado, 13 de dezembro de 2008

A imaginação de Deus

Félicien Rops

Há já muitos anos que tenho esta ideia como verdade indesmentível: Deus, a existir, revelou uma gritante falta de imaginação no momento da criação! Não discuto a sua ilimitada capacidade de criação, mas por isso mesmo me parece evidente que não só poderia ter tornado a nossa vida mais divertida como lhe teria sido fácil tornar menos espinhoso o espinhoso mundo dos afectos!


Milénios e milénios passados e essa espécie de drama quotidiano foi-se tornando parte da nossa natureza. Colada à pele, temos a condenação de vivermos em permanente tensão entre a evidência do dualismo – há gajos e gajas… - e o ideal de complementaridade. Ou seja, por um lado percebemos as diferenças e até as reforçamos, mas por outro vivemos no arrebatamento da procura do amor verdadeiro, aquele capaz de conciliar as partes desunidas numa só alma redimida. Dito assim, tudo parece simples: ao capricho dos deuses que segundo os velhos mitos nos separaram, responderíamos com o achamento da metade que nos falta. Pois é, também por aqui se vê que por vezes as coisas simples se revelam bem complicadas! Porém, e este é o meu ponto, tivesse sido Deus mais ousado e estou em crer que tudo teria resultado mais fácil.

Vai um exercício de pura especulação delirante? Imaginemos então um demiurgo mais criativo que o que nos coube em sorte. Eventualmente bastaria apenas que fosse um pouco mais ébrio. O que importa para o caso é que imaginemos que ele decidia, na sua altíssima e soberana inteligência, oferecer aos seres humanos não dois mas, digamos, cinco sexos! Isso mesmo: esqueçamos o singelo mas grosseiro dualismo ♀ ♂ e atentemos nesta grelha:


SEXO .......................A......B.....C.....D.....E .............A.....B.....C.....D.....E

CONFIGURAÇÃO .........Tipo 1 – Concavo ..................Tipo 2 - Convexo

DESCRIÇÃO ............A 1...B 1...C 1...D 1...E1............A 2..B 2..C 2..D 2..E 2



Imaginemos um pouco mais. O nosso criativo demiurgo, como bebera entretanto uns copitos a mais, decidiu tornar as coisas um pouco mais complicadas. Ou estimulantes, depende da perspectiva... Assim, em primeiro lugar, achou por bem que cada ser humano nascesse provido não de um mas de três sexos - daí a expressão «três é a conta que Deus fez...». Decidiu ainda que as concavidades e convexidades não se encaixassem do modo mais óbvio e lógico. Por exemplo, o A 2 (convexo) apenas se adaptaria ao C 1 (convexo), enquanto que o C 2 apenas encaixaria, digamos, no E 1 (concavo). Confusos? Não é caso para tanto, mas em todo o caso penso que tudo ficará mais claro recorrendo a um exemplo concreto.

O Carlos Alberto e a Cátia Marisa amam-se. Pelo menos desconfiam que sim. Acreditam que se complementam de uma forma suficientemente satisfatória para serem felizes um com o outro. Se quisermos dar uma de liberais, podemos imaginar que ambos partilham uma visão desempoeirada da sexualidade, de tal forma que admitem mesmo que a relação entre ambos admite abertura (controlada) a outras experiências. OK, vou ainda mais longe: ambos possuem uma bissexualidade latente, inequivocamente prometedora de emoções fortes! E pronto, fomos longe na imaginação mas, mais coisa menos coisa, daqui não se passa.
Consideremos agora a solução alternativa. O Carlos Alberto possui os sexos A 1; B 2 e C 1. Quanto à Cátia Marisa, a natureza dotou-a com os sexos A 2; D 1 e E 2. O nosso parzinho entender-se-ia às mil maravilhas através dos sexos C 1 / A 2. Mas e o que ficava por preencher?! É que, por muito que tentassem, as concavidades e convexidades restantes não encaixariam umas com as outras. Que fazer perante tamanha aflição? É neste exacto ponto que esta visão alternativa se torna interessante!

Interessante mas previsível, reconheço. Claro, está bem de ver. Era necessário, indispensável e pacífico abrir a/s porta/s a mais gente. Como sou ruim a matemática abstenho-me de tentar calcular quanta gente mais. Basta fazer notar que cada novo amor trazia consigo uns quantos mais! Uma verdadeira comunidade de amantes! Autentica festa dos sentidos! Com a vantagem adicional, verdadeira cereja no topo do bolo, de acabar com a estrita funcionalidade reprodutiva, pois nesta ordem alternativa todos podiam engravidar e ser engravidados. Talvez existisse a dificuldade de saber quem cometera essa façanha, mas isso já é outra conversa.

Os mais pessimistas dirão que isto só exponenciava o conflito. Hereges, é o que são! Vejam bem: andaríamos todos tão ocupados a descobrir concavidades e convexidades alheias que não teríamos tempo nem disposição para zangas! É ou não é?! E que festiva religião não seríamos nós capazes de fazer para louvar tão providente demiurgo? A evidência do princípio do prazer tornaria indesmentível aquilo que alguns se empenham em negar: é o orgasmo, meninos, é o orgasmo que mais nos aproxima de Deus. Mai nada!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A troca

Henri Cartier-Bresson



Portugal declarou estar disponível para aceitar receber alguns dos prisioneiros de Guantánamo, nomeadamente parte daqueles que não vão ser julgados mas que tampouco podem regressar aos seus países por não terem garantia de segurança nesse regresso. Ora aqui está uma decisão para ninguém botar defeito! Finalmente, parece que o governo decidiu mostrar que a tradição humanista associada ao socialismo democrático não é letra completamente morta. Até eu, tão habituado a este ruim vício de dizer mal de tudo, tenho que dar o braço a torcer: desta vez os senhores do governo andaram bem.

Porém, é sempre possível ir mais longe, mesmo nas boas decisões. Desde logo, há que ter em conta que nos tempos que correm ninguém dá nada a ninguém. É por esta razão que me parece muito razoável passar da aceitação humanista para uma relação mais simétrica. Digo isto porque talvez o governo não se tenha lembrado, mas boa ideia mesmo era procedermos a uma troca de prisioneiros! Sou ou não sou um gajo de ideias?! E até dispenso os agradecimentos do governo ou uma eventual comendazita no 10 de Junho. Deixo a ideia desinteressadamente!

Proponho, por exemplo, que se trocasse o Oliveira e Costa por um perigoso barbudo do Uzbequistão; a dona Fátima Felgueiras por feroz sírio com o respectivo cinto de bombas e até mesmo, porque não, o grande Vale e Azevedo por um chinês dos pequeninos. Garanto que ficávamos a ganhar com a troca! Ganhávamos em tranquilidade e bom viver. O problema é que nós temos gente a mais para o exíguo número de prisioneiros que os americanos querem libertar. Paciência, teremos que deixar os deputados relapsos para segundas núpcias. Não, claro que não é por faltarem às votações que os quero despachar. Quero lá saber se vão ou não ao hemiciclo. Aliás o problema é esse, é ninguém lhe sentir a falta senão quando é para levantar o dedo. Tirando uma mão cheia deles, aos outros não se lhes conhece uma ideia, menos ainda uma obra. Assim, se fossem para Guantánamo, pelo menos podiam obrar por lá…

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Perder a alma e a vergonha

Luís Afonso

Este blog não tem nenhuma linha editorial. Nem quer. A ideia sempre foi a de ir andando e vendo, escrevendo de acordo com essa deambulação, que na verdade é mais mental que física. Apesar desta abertura reconheço que sinto uma certa repugnância em meter a pena em determinados assuntos. Porquê? Ora, porque quando mexemos em merda acabamos, inevitavelmente, por nos sujar com ela. Vem isto a propósito dessa tropa da finança e da governação, desse conúbio excitado, em relação ao qual é impossível dizer quem faz o papel de puta e quem o de garanhão assanhado. Vão alternando, é o que é, facto que só mostra a perfeição da parelha.

Há uns gurus que se esforçam por nos mostrar que a actual crise tem evidentes semelhanças com a que o mundo viveu no final dos anos 20, mas há também outros, tão gurus quanto os primeiros que asseguram que não é nada assim. Enfim, eles que são os gurus que se entendam, mas entre os dois momentos há uma diferença que não pode deixar de ser notada. É que em 1929 os financeiros caídos em desgraça assumiram o disparate. Houve até alguns que pularam dos altos lugares a que tinham subido para se estatelarem cá em baixo, na calçada, junto da gente anónima. É verdade que não temos por cá nenhum Empire State Building e talvez não tenhamos sequer nenhum trampolim suficientemente digno para a excelência das criaturas que nos foram governando as finanças, mas que diabo, não seja por isso, há ainda assim edifícios com altura suficiente para assegurar o sucesso do empreendimento.

Estou a brincar, claro que estou a brincar! Queria lá agora semelhante coisa! Que seria de nós sem esses abnegados cidadãos que de nós tão bem cuidam? E na verdade, não saltar para o vazio, não assumir as consequências dos actos desastrosos que cometeram, é apenas perder a alma. Nada de mais: talvez uma alma se possa comprar… afinal trata-se de gente habituada a comprar tudo. Seja como for, suicídio de honra à parte, mandaria o pudor que se mantivessem num recatado silêncio comprometido. Perder a alma é o de menos, grave mesmo é quando são exactamente os mesmos impolutos cidadãos que se colocam em bicos de pés acenando com a solução para as porcarias que eles mesmo fizeram. Neste caso não se trata já de ficar sem alma mas de perder a vergonha.

«Salve-se a banca, custe lá o que custar!» E o governo diz presente, lançando milhões sobre as frágeis instituições como se fosse um cura de aldeia lançando água benta sobre os pecadores. 450 milhões de euros para o BPP não é nada de mais. Sobretudo se tivermos presente que o fazem com a melhor das intenções: garantir que os «muitos milhares de depositantes não perdem as suas economias», disse o ministro. Veio depois a saber-se que, ao todo ao todo, os tais depositantes perfazem o astronómico número de… 3 mil. Faz lembrar aquelas crianças que quando estão a aprender a contar dizem «1 – 2 – 3 – 4 – 5 – muitos…». O ministro, que é uma espécie de criança retardada, conta «Um milhar – dois milhares – muitos milhares…». Já agora, visto que somos todos nós a pagar a conta, devíamos ter direito a saber quem são esses três mil magníficos que estamos a amparar. E, já agora, se não for pedir muito, era também bom saber quanto abichanaram eles no tempo das vacas gordas…



Vale a pena considerarmos a lógica irrebatível da argumentação. Enquanto se tratou de ganhar milhões jamais passou pela cabeça das selectas criaturas qualquer forma de redistribuição. Vivia-se o liberalismo no seu máximo esplendor:

- Quem tem unhas é que toca guitarra, e nós, que nos preparámos arduamente para ser mais inteligentes, mais capazes, mais competentes, mais informados que a humanidade em geral, porque diabo temos agora que repartir proveitos? Tratem da vidinha, façam-se espertos que nem nós. Então andou a minha mãezinha a ser enrabada em casas de mau porte para eu chegar a engenheiro e isso de nada vale? E o papá, obrigado a assaltar transeuntes no pinhal da Azambuja para me pagar o MBA? Como pode alguém imaginar que possa perder-se tão doloroso investimento - pelo menos muito a mamã se queixava? Ainda por cima em proveito de uma ralé desqualificada! Não faltava mesmo mais nada!

Quem se atreveria a rebater tão poderosos argumentos? Nada mais justo, pois claro. O problema é que logo que o cenário mudou também a retórica se fez nova. Os convictos liberais fizeram notar de imediato que assim não podia ser.

- Será então justo que sejamos nós, nós que tanto nos sacrificámos pelo bem do país, a arcar com este trambolhão dos mercados? Pode lá ser tamanha desfeita! O melhor, o mais justo e o mais adequado à difícil situação é, sem dúvida, distribuir o mal pelos dóceis lombos habituais.

É claro que já se fizeram revoluções por muito menos e aposto até que outras se farão por coisas da mesma natureza. Mas a nós sempre nos tramaram uns tais de «brandos costumes», não sei se têm ouvido falar… Mesmo isto que aqui escrevo não é mais que estéril (e histérico) desabafo, reconheço. Consigo até ver que tudo isto é bem mais simples do que parece. O problema verdadeiro, chamemos-lhe nó górdio, talvez seja apenas o de não termos verdadeiros empresários. Pois é: não temos, nunca tivemos e há demasiada gente empenhada em que nunca venhamos a ter. O que nós temos mesmo é malta especializada em fazer o mal e caramunha, em atirar a pedra e esconder a mão. Meninos que são mais liberais que o mais liberal dos liberais quando a coisa lhes convém, mas que logo estendem a mão ao pérfido Estado quando a vida lhe corre mal. Não só sem mostrarem vergonha, que essa, já o disse, há muito a perderam, mas de peito cheio de certezas: «Somos nós que sabemos como se deve fazer, portanto, arredem-se para lá e deixam-nos trabalhar». E assim vamos. Sempre cantando e rindo como tão bem nos ensinaram.

E o governo, senhores? Pois não é ele socialista? Se o é, não lhe ficaria bem pôr termo a tão desatinado regabofe? Dir-se-ia que sim, mas no que toca à alta finança e à baixa política as coisas nem sempre são o que parecem. O governo já explicou que dava um mau aspecto do caraças deixar falir um banco português. Caiam-nos os parentes na lama se tal desgraça acontecesse. Que diriam de nós os demais? Os estrangeiros, logo eles, sempre tão atentos a fraquezas desse tipo? Pela parte que me toca tendo a achar que ficamos bem pior na fotografia por sermos o país mais desigual de toda a União Europeia. Claro que isto sou eu a misturar alhos com bugalhos. Então não se vê logo que uma coisa nada tem a ver com a outra?

A possibilidade de um banco falir (como se não falissem bancos todos os dias…), isso sim, deve afligir-nos; a pobreza no meio da riqueza é uma coisita desagradável, de acordo, mas que podemos nós fazer? Vendo bem, a desigualdade social nem chega a ser um verdadeiro problema. Então não estamos todos fartos de saber que tal flagelo tem apenas a ver com a baixa produtividade? Pois é! Trabalhem mais e mais ganharão. É a velha história: a competência e o trabalho devem ser premiados.

Já sei: aí vêm os bota abaixo afirmar que a regra nem sempre é essa. Prontinhos a dizer que o senhor Loureiro, que até chegou a ser ministro, se auto-proclamou incompetente. É verdade que as falcatruas lhe passaram todinhas ao lado, mas isso que tem a ver com incompetência? Então alguém acredita que um sujeito incompetente faz fortuna em tão pouco tempo? Dizem-me aqui que sim, que é possível, que está até sempre a acontecer, mas eu cá não acredito. Bom, pelo menos posso esperar que este meu lado de angelical ingenuidade acabará por me levar à glória de Deus. Será que lá também sujarei os dedos a mexer em certos cidadãos?

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Zoo humano

Hans Bellmer


As memórias são assim mesmo: guardamos algumas ciosamente, por vezes a tão bom recato que recusamos mesmo partilhá-las com quem quer que seja, enquanto outras, perdidas sem pena, nos visitam inesperadamente e sem que alguma razão verdadeiramente válida as tenha convocado. Sucedeu isso mesmo quando arrumava uma estante e deparei com um livro que há muito esquecera, Freaks, no qual é revelada uma curiosa colecção fotográfica de «aberrações humanas». Gigantes e anões, irmãos siameses, mulheres barbudas, hermafroditas e homens com cauda, entre muitos outros exemplos de humanas criaturas - a maior parte das quais ganhou a vida exibindo-se em feiras e circos – constituem o espólio recolhido pelo negociante de arte, Akimitsu Naruyama, e mostrado em Freaks.

Este livro, inesperadamente redescoberto, significou para mim dar uma trinca na madalena proustiana, salvo seja. Graças a ele reencontrei-me com uma das primeiras imagens de estranheza e fascínio de que consigo lembrar-me. Trata-se de uma memória de tal forma desbotada que se torna impossível distinguir as fronteiras entre aquilo que de facto vi e o que terá sido posteriormente acrescentado. Na cidade de província onde vivia chegou um dia, juntamente com outras atracções de feira, o «Gigante de Moçambique». Estou certo de que foi mais por curiosidade minha que por interesse próprio que meu pai me levou à tenda onde o «fenómeno» era exibido.

Julgo que se viveria então o começo dos anos 70, época em que atracções como aquela ainda agitavam o quotidiano das cidadezinhas de província. Não esqueço que vivíamos então num país esquisito, mais esquisito ainda do que o país em que hoje vivemos, mas ainda assim, olhando a esta distância, uma exibição como aquela talvez enfermasse já de um profundo anacronismo. De facto, os freaks do meu livro tiveram a sua época. Fizeram furor no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX mas desapareceram de cena tal como o Emplastro Leão ou o óleo de fígado de bacalhau. Sobraram todas estas fotos que agora olho, enquanto procuro, nos subterrâneos da memória, alguma imagem mental do «meu» gigante moçambicano. Vício de putativo e frustrado escritor, não posso deixar de pensar nas fantásticas possibilidades narrativas contidas naquelas vidas singulares. Acho que foi por esta razão, confessadamente interesseira, que procurei saber mais sobre aquele homem desmesurado que vi pela mão de meu pai. Num outro post falarei dele, mas por agora deixarei de lado esses quase dois metros e meio que lhe deram fama e sofrimento. É outra a questão que aqui me interessa.



«Vénus hotentote»


No início do século XIX uma jovem bosquímane de nádegas salientes, apelidada de «Vénus hotentote», fez furor na Europa, sendo exibida ao público ao lado de outros «fenómenos bizarros». A particularidade anatómica que fez dela objecto de curiosidade - tanto de cientistas quanto do público anónimo - era vista como característica da sua «raça», facto que, está bem de ver, confirmava alguns dos estereótipos mais correntes acerca da sexualidade desbragada dos selvagens. Muito embora fossem muitas as características e diversas as proveniências das «peças» expostas num autêntico zoo humano planetário, pode dizer-se que uma parte importante dessa estranheza oferecida à curiosidade dos «povos civilizados» resultava do próprio processo colonial. Nativos semi-nus, pintados ou tatuados, falando línguas incompreensíveis, vivendo em palhotas e dançando seguindo o «ritmo do batuque», eram uma componente indispensável, por exemplo, em exposições coloniais - como a de Paris (1931) ou a do Porto (1934).

A chegada desses homens e mulheres às metrópoles constituía, assumidamente, uma excelente oportunidade para generalizar e «democratizar» a experiência do exótico. O povo agradecia penhorado a possibilidade de admirar as mamocas das pretinhas e até, quem sabe, a ferocidade domesticada de verdadeiros caçadores de cabeças. Bem sei que este contacto com o diferente não se circunscreveu aos nativos importados pelo colonialismo. De qualquer forma, o importante é perceber que tanto uma mulher barbuda, proveniente de uma qualquer província metropolitana, como um nativo do Império, cumpriam um papel muito semelhante. Ambos alimentaram o imaginário de várias gerações de homens e mulheres que a si mesmos se viam como "civilizados", mas, para lá disso, ambos podem ser vistos como despojos de um mundo em mudança. Um mundo que aspirava a uma apaziguadora conformação, que devia abranger tanto a disciplina do corpo como o modo de sentir, tanto a experiência da fé como a confiança numa «civilização» redentora.

O que foi que sobrou desse imaginário? Será que dispensámos definitivamente esse circo do bizarro e do monstruoso? E, se o fizemos, como podemos nós passar sem esse imaginário que tão claramente nos situa e define por relação aos que nos são estranhos? Coloco a questão de uma outra forma: se esse nosso fascínio pelo que está para lá das fronteiras do que somos tem realmente importância para a nossa definição identitária, de que forma foi substituída a exibição impudica de alteridade que encantou os nossos pais e avós? Qual o seu substituto funcional? Estou certo de que os media, pela revolução que imprimiram ao modo de ver e de evocar, são parte decisiva na resposta a essa questão. Podemos simplificar, falando de uma passagem do oral ao escrito - muito embora estejamos conscientes da insuficiência desse processo, nomeadamente se ele deixar de lado toda a espantosa multiplicação do que nos é oferecido ao olhar. Instrumentos como a fotografia, o cinema ou os videojogos, possuem a inequívoca capacidade de responder a essa fome de imaginário que hoje, tal como no passado, não dispensa da sua dieta a extravagante diferença que ao mesmo tempo nos seduz e ameaça.