quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A estranha vida das palavras

René Magritte




Desde que Ulisses a si próprio se baptizou «Ninguém», dessa forma iludindo Polifemo e os demais ciclopes, que as palavras parecem condenadas a ter tanto de engano quanto de virtude. A desgraça do pobre Polifemo, com o único olho vazado por um barrote, exclamando que fora Ninguém quem lhe fizera mal, foi a sorte de Ulisses e dos companheiros, que dessa forma escaparam ao monstro voraz que os guardava para uma próxima refeição.
Não vivemos senão na palavra e pela palavra e não apenas porque é através dela que comunicamos. Há algo mais na nossa relação com elas: são as palavras que nos dão o entendimento do mundo em que vivemos. Quem somos e o que somos, o que são os outros para nós, que mundo é este que nos cerca e que sentido lhe damos, que sonhos podemos ter e quais os desejos que nos estão vedados. Tudo isto e mais ainda está contido no universo da palavra. Sem que disso tenhamos clara consciência, as palavras nascem e extinguem-se, adquirem novos sentidos e conotações, aplicam-se a objectos imprevistos e definem novos campos de significação. Estas mudanças podemos até senti-las e percebe-las mas o que quase sempre acontece é que vemos nelas apenas a dinâmica da comunicação e não o processo de construção do mundo.
Isto que digo é fácil de perceber olhando o modo como certos conceitos migram de umas para outras áreas e as colonizam. Veja-se como o vocabulário militar, estruturado em torno do conceito de estratégia, se tornou decisivo no discurso político e económico, ou seja, nos lugares simbólicos (e práticos) de explicação e justificação do mundo. Basta folhear um livro de gestão de empresas ou estar atento ao discurso político que todos os dias nos entra casa dentro, para perceber o argumento. Esta colonização do vocabulário militar ensina-nos o valor da táctica para vencer nesse campo de batalha, que é, afinal, o nosso enorme mundo, que devemos ver fragmentado entre aliados e adversários.
Nem sempre, porém, esta migração de conceitos deve ser vista sob este prisma um tanto ou quanto maniqueísta. Em alguns casos essa migração é simplesmente ridícula. Juro que já ouvi um relator de um desafio de futebol dizer que se “abriu uma janela de oportunidade” ao ponta-de-lança e que foi assim que ele fez golo! A moda, que torna certas palavras vibrantes e indispensáveis em certos momentos e as remete ao esquecimento noutras ocasiões, faz também parte da estranha vida das palavras. A moda e uma valorização simbólica profundamente contingente, que tanto pode favorecer a mais singela das simplificações como apelar ao mais retumbante dos excessos prosódicos.
Esta dupla face da palavra remete para uma dimensão propriamente mágica. Não brinco: é mesmo mágica! Um sim ou um não podem modificar tudo na vida de uma pessoa. Pode um sim significar a vida e um não a morte. Ou vice-versa, o que vai dar ao mesmo. Assim foi com Giordano Bruno e com Galileu - e mesmo que séculos mais tarde o poeta tenho vindo proclamar “Tu é que sabias, Galileo Galilei...”, a verdade é que raras vezes há certezas nessa contracção tão absoluta de uma decisão. Ao contrário, quase sempre o que mais conta é o imenso universo de cor e ambiguidade que existe entre um sim e um não. É nesse sentido que falo de magia: «Diga as palavras mágicas e a sua vida mudará para sempre!». «Sim, eu abjuro o que disse antes; no que acreditei desacredito agora!» Assim se salvou Galileu e nem por isso a terra deixou de girar teimosamente em torno do sol.
Pela parte que me toca, sempre suportei mal esse peso avassalador das palavras singelas. Medo que me enfeiticem, deve ser isso. Vejo-as como um ponto falsamente destacado, um vórtice que tudo engole, espécie de aleph borgesiano que ilude quem espreita pela frincha que o revela. Será por isso que nunca cheguei a dizer o sacrosanto «sim» matrimonial? Claro que podia fazer como um amigo meu, artista plástico com mais prosápia que talento, que achou por bem substituir o sobrevalorizado «sim» por um mais sonoro «pois claro». O padre bem insistia «Deve dizer sim, aceito» e ele, teimoso, «pois claro que aceito». Daquilo não se saiu e teve o padre que dar-se por satisfeito com aquela deturpação do cânone. Mas deve ter-lhe rogado uma praga, pois meses depois estava o jovem casalinho condenado por posse e tráfico de estupefacientes. Moral da história? Não tem, é uma história imoral mas confesso que sempre gostei delas assim.
Parece-me que me desviei um pouco do que me propusera inicialmente. E daí nem tanto. Não é só pelo modo como as palavras se transformam pelo uso que lhes damos que a sua vida é estranha. Ela é-o também pela forma como decidem a nossa vida. Pelo modo como nos comprometem e nos enganam. George Steiner, num ensaio recente, pergunta-se como amará um surdo-mudo. Como amará alguém que não foi tocado por essa magia da palavra dita e escutada? Talvez a pergunta seja irrelevante e também o silêncio, essa ausência de expressão mas não de sentimento, faça, afinal, parte desse estranho mundo das palavras a que prometo voltar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

A nova ordem mundial do desejo!!

Balthus

Dizem-me que a convulsão e o arrebatamento dos corpos e dos instintos são próprios dos grandes finais. Asseguram-me que à morte dos grandes impérios sempre se associou uma espécie de falência de valores e certezas e que disso resultam múltiplas consequências. A ser assim, o declínio do império americano (abençoado seja o declínio, não o império…) será inevitavelmente acompanhado por uma série de desastres & catástrofes & bíblicas punições mas também por uma espécie de reinvenção do que somos através dos excessos. Dizendo de outro modo: para lá da perda do carro, da casa e da reforma, adivinha-se o regresso de algumas das extravagâncias que assinalaram a debacle de antigos impérios. Para ser ainda mais claro: podemos perder tudo o que disse e mais ainda, mas apaziguaremos a desgraça em orgias de proporções cósmicas! Dirão os mais apressados: lá está ele a confundir os seus mais destravados desejos com a dura realidade histórica! Juro que não. Desde logo porque falo de orgia em sentido amplo, como, aliás, teria que ser, já que lhe atribuo essa proporção cósmica. Mas a certeza de que não me engano reside noutro detalhe: é que esse estado orgástico há muito que começou e a ele, já hoje, poucos de nós escapamos.
Podia armar-me em chato e falar das orgias consumistas e de como o mundo inteiro se verga à sua lógica e despudor. Porém, como nesta conversa convém que o pé não vá além do chinelo, focar-me-ei nessa convulsão de corpos e desejos a que aludi (grande surpresa, não é?!). Habituado ao empírico por dever de ofício, não quero falar aereamente nem fazer de ideias superficiais matéria de tese. Ater-me-ei, rigorosamente, ao que observo da janela em que me debruço. A minha amiga Sofia confidenciava-me há dias o seu desejo de viver um amor simples. Olhei-a com espanto. Prisioneira habitual de indecisos amores teria ela encontrado a Verdadeira Luz? Precipitado como sou, pensei logo na velha fantasia de um amor e uma cabana, ou então, mais prosaicamente, nela e no seu rapaz, mão com mão frente à lareira, olhando na TV, embevecidos, a novela da moda ou uma comédia romântica. Do alto do seu metro e oitenta (saltos incluídos), olhos verdes e levemente estrábicos arregalados, depressa me esclareceu. Que não era nada disso. Que um amor simples podia incluir tudo (sublinhou o “tudo” abrindo os braços), desde que houvesse cumplicidade e partilha entre os dois. «Festarolas a três, quatro ou mais? Colchões de água e mergulhos em motéis em múltipla companhia?», perguntei eu ingenuamente. «Pois claro!», garantiu, com o olho ainda mais arregalado de genuíno espanto.
É este o meu ponto! Não há mais lugar à tranquilidade conubial de outrora. Conheço a imediata objecção: vendo bem nunca existiu essa tranquilidade, pois com uma facadinha aqui e outra ali quase sempre havia mais que dois no tálamo consagrado dos esposais. Isto é certo, mas admitam, caros leitores, que entre o que não se sabe, ou sabendo não se assume, e o que passou a fazer parte dos acordos do casal vai uma grande distância. Até que bate certo: deve ser a distância entre uma civilização no seu auge e a sua queda iminente. Há uma outra objecção de peso a que importa responder. Dir-me-ão que uma andorinha não faz a Primavera e que a Sofia é a Sofia, excelente moça a quem, eventualmente, os amores indefinidos terão toldado o sentido. Errado uma vez mais. Basta a gente passarinhar pela net, visitar sites de encontros ou conversar com desconhecidos para percebermos que a sinistra mancha do delicioso pecado alastra desgovernada. Bem sei que convém distinguir entre fantasia e realidade, mas o certo é que bastam dois minutos de conversa para que as todas as possibilidades eróticas menos convencionais se soltem no discurso. «Ménage a trois, já experimentaste?», «Clube de swing, já foste?», «Acreditas que a minha última queca foi numa cabina telefónica em plena Baixa?» Juro que é este o tom dominante, de tal forma que só nos resta proclamar o fim de império e brindar ao que aí vem.


Balthus


A esta sede de experimentação (leia-se vontade de rebaldaria…) associa-se uma logística cada vez mais sofisticada. A Sofia, ela mesma, já mostrou interesse numa máquina cheia de correias e alavancas que um amigo meu inventou. Mas também aqui não é só ela. Haverá ainda quem use um simples preservativo convencional? Já não! Agora têm que ser estriados, coloridos, com sabores, vibrantes, comichosos… eu sei lá! Também os consoladores nunca estiveram tão na berra. Vendem-se como pãezinhos e não há ninguém que se possa lamentar de não encontrar um a seu gosto – tamanho, forma, cor e minudência técnica adequada à fantasia de cada um/a. Toda a gente pode realizar fantasias pagando pouco. Ou nada. Chega a ser preocupante para quem gosta de coisas simples. Por exemplo, atreva-se alguma miss a ir para um primeiro encontro com uma daquelas cuecas confortáveis, de algodão e gola alta! Tenho a impressão que o parceiro, obnubilado pelos fantasiosos tempos que vivemos, a confundirá com alguma madre abadessa e fugirá dali a sete pés!
Poremos fim ao império ianque celebrando essa tal orgia de proporções cósmicas. Fim de um ciclo e nascimento do outro. As filosofias orientais não andam assim tão longe deste enunciado, só que dispensam os acessórios, os motéis e a internet. Seja como for, há-de ser a energia libertada por tão participado processo que nos redimirá. No novo ciclo logo virão causticas regras de contenção e pudor. Por isso, aproveitemos agora que o tempo urge e sempre ficaremos com a medalha de bons revolucionários para mostrar aos netinhos!

Balthus

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Jogo duplo

René Magritte



Apertou o papel na mão fechada até sentir que os vincos lhe magoavam a carne e só quando se assegurou de que ninguém a olhava ou percebera o seu gesto, se atreveu a lê-lo. «Estarei no bar Gabriel e os Anjos hoje às 11 horas. Se fores capaz de me identificar, serei teu esta noite. Leva as asas para voarmos juntos». Só isto, nada mais no pedaço de papel cuidadosamente dobrado que encontrara ali, entalado na almofada daquela cadeira anónima da pastelaria onde ia cada manhã.
Era uma daquelas mulheres discretas, cuja beleza jamais se revela ao primeiro olhar. Uma daquelas belezas escondidas e reservadas, terreno conquistado e colonizado pelo companheiro de muitos anos. Um daqueles casos em que a beleza dos começos se perde irremediavelmente, da mesma forma inevitável que as rugas substituem a macieza da pele ou os cabelos brancos roubam o brilho ao cabelo com que atravessamos metade da vida. Esta mulher estava no ponto exacto em que tais efeitos se tornam uma realidade inescapável. Sem ter consciência disso, estava num lugar de fronteira, balouçava na linha invisível que separa redenção e perda – lugares tão difusos e cambiantes que raramente temos a certeza de qual o lado da fronteira que cabe a um e a outro.
Ela, que sempre fora fiel e feliz com o amor que escolhera, escondeu o papel entre as mãos unidas e levou-as à altura do peito quase com ternura. Demorou alguns segundos aquele pasmo melancólico. Quase de imediato se sentiu ridícula e desabou numa gargalhada nervosa. Como pudera pensar, sequer por momentos, que aquele convite lhe era dirigido? Sabia que havia gente que se divertia assim. Pelo menos imaginava que pudesse haver. Um papel sem destinatário e sem verdadeiro conteúdo! Sempre gostaria de saber o que sucederia se alguém respondesse ao convite. E se ela o fizesse? Encontraria alguém rindo-se da situação? De novo se sentiu ridícula por ponderar sequer semelhante hipótese. Afinal, talvez o papel estivesse ali há dias, há semanas… Não, isso não, estava certa que não. Ontem mesmo estivera sentada naquela cadeira e conhecia bem aquele gesto, quase vício, de entalar a mão na dobra das almofadas. E se o papel fosse realmente para ela? Olhou à volta de forma mais atenta e comprometida. Àquela hora a pastelaria estava quase vazia e só os olhinhos míopes de uma gorda decotada pareciam olhá-la com interesse.
Quando no fim do dia chegou a casa, o papel estava guardado no bolso das calças, ainda tão cuidadosamente dobrado como quando o encontrara. Não o esquecera todo o dia, embora a si mesmo assegurasse que sim. Ao debruçar-se sobre o marido em busca do beijo rotineiro, colocou-lhe a mão no ombro e fez desse gesto o compromisso de esquecer toda aquela loucura inconsequente. Aquele seria um serão como todos os outros mansos serões habituais. Ou não, melhor fazer diferente. Dar-lhe o jeito de uma comemoração ou de um ritual. Porque não cozinhar para ele? Há quanto tempo o não fazia! Substituiria a falta de talento pela devoção e faria dela uma prova de afecto, testemunho inquebrantável do apaziguamento que já sentia. Levantou-se decidida e foi completamente involuntário o gesto que lhe levou a mão ao bolso. Sentiu o papel como uma brasa queimando-lhe os dedos. Nenhuma dor, mas uma espécie de chama branda e convidativa que lhe foi subindo pelo braço e se apossou do seu corpo.
«Vou ter que sair mais logo. Uma reunião inesperada. Acho que não consigo voltar cedo». Disse aquilo mas foi como se outra pessoa o tivesse dito com a sua voz. Estranha sensação de alívio e de medo, bizarra mistura que nunca experimentara. Longe do marido, sentido o coração cavalgando desembestado, voltou a ler o papel. Quanto não daria para de novo sentir o ridículo que sentira antes. Um ridículo profundo que a levasse a desdizer-se, «Afinal a reunião foi desmarcada. Fico contigo».
Saiu tensa e apressada, evitando o olhar do marido. Verdadeira executiva a caminho de uma reunião, ar duro e determinado, sem nenhuma maquilhagem que lhe disfarçasse o cansaço. Num saco discreto mas inesperado levava uma saia mais curta e umas meias de rede. Não tinha já memória da última vez as usara. Habituada a gerir uma agenda carregada, calculou tudo com precisão. Uma passagem rápida pelo ginásio fez dela outra mulher. Descobriu com surpresa que o seu corpo guardava ainda a virtude da sedução. Eram as mesmas formas, apenas o tempo as enquistara sem que ele alguma vez o percebesse. Gostou da sensação de reencontrar a mulher que fora. O sorriso denunciava a alegria da descoberta de uma parte esquecida de si.
Entrou no bar às onze horas. Fez questão desse rigor quase maníaco que a tornara notada na empresa. Empurrava-a a vontade de acabar com tudo aquilo rapidamente, rejeitando, ao mesmo tempo, a responsabilidade de algum eventual equívoco. Se o convite era para as onze horas, ali estava ela, disposta a procurar de peito aberto quem a convidara. As cartas estavam na mesa e se havia jogo ela queria jogá-lo até ao fim. Não precisou procurar muito. Ali estava ele, numa mesa de canto, debaixo de um espelho oval emoldurado em talha dourada. Em momento algum hesitou ou teve dúvida. A forma como os olhares se cruzaram revelou que também ele percebera o acordo e que as palavras eram dispensáveis.
Amaram-se no motel mais próximo e as palavras apenas rebentaram no momento em que os dois corpos se fundiram e abrasaram. Havia em tudo aquilo uma pressa furiosa, um tesão que parecia ter ficado guardado durante anos e agora ansiava por ser consumido numa chama súbita e deslumbrante. Ficaram calados depois. O corpo do homem ofegante sobre o dela, os dedos entrelaçados de encontro às coxas tensas, que relaxavam com espasmos súbitos e incontrolados. Mais tarde saíram do motel separados, cada um voltando devagar à vida serena a que estavam habituados. Haviam de se encontrar em casa e, então sim, trocariam as palavras banais que sempre usavam para planificar o dia seguinte.

sábado, 18 de outubro de 2008

Com balões e pipocas nos trocam as voltas...




Vivemos tempos estranhos. Não o digo apenas pela crise financeira ou pelos tresloucados actos que a ela conduziram. Digo-o por tudo o que nos vai cercando e conduzindo a nossa vida. Como se fosse uma segunda pele, vestimo-nos com esta capa feita de sedução e conforto, apegamo-nos a ela como se não a pudéssemos largar e por aí vamos, tão felizes quanto ligeiros, caminho de algum buraco ou abismo que adiante nos espera. Bem sei que sendo tantos os convertidos não há buraco ou abismo que nos engula. Não caberíamos nele!
Seja como for, as circunstâncias actuais levam já os prudentes a apontar o dedo e a fazer notar que talvez a capa não seja de arminho ou, se o é, talvez não tenhamos condições para verdadeiramente a ela nos enrolarmos. Dito de outra forma, deve ser hora de reajustarmos a relação entre necessidades e desejos. A ideia que foi motor fiel da nossa vida desde o final da Guerra parece ter-se esgotado. Consumir mais, sempre mais, inventar continuamente novas e imperiosas necessidades, embarcar num contínuo crescimento económico, vender a todos férias tropicais e automóveis topo de gama, esse sonho pueril de criança mimada, se não acabou de vez levou um forte abanão. Cá estaremos todos para ver que novos sonhos inventarão para nós. Sim, porque este balão que de repente esvaziou há-de de novo ser enchido para nosso deleite e paz de alma.
Apesar de apenas gostar medianamente de crianças, interessa-me o que é pueril. É um interesse casto, garanto. Uma espécie de olhar cínico para todos nós. Desta vez - nem sempre foi assim na longa história do Homem - deram-nos a volta fazendo de nós eternas crianças. Foi esse o ar com que enchemos o balão. Lembram-se daquela velha história, que Lucas nos conta no Evangelho, da tentação de Jesus pelo Diabo? «Dar-te-ei todo este poder e a sua glória (...) Se tu me adorares tudo será teu». Acho que foi mais ou menos isso que nos sucedeu. Só que Jesus era teso e disse logo, de dedo em riste, «Vai-te Satanás!», enquanto nós, que somos moles e tendencialmente obesos, aceitámos a dádiva. E assim passámos a vestir Prada, Gucci e Doce&Banana ou lá como se chama. Enfim, a consumir cada vez mais como se disso dependesse a própria vida e não pudesse haver felicidade se não dessa forma.
Tudo isto que convosco desabafo foi despoletado, imaginem só, por essa mania indizível de devorar baldes de pipocas no cinema. É apenas uma metáfora, de acordo, mas é uma boa metáfora para essa infantilização que tomou conta das nossas vidas. Homens barbados e pais de filhos, mulheres decididas e independentes, rilhando pipocas furiosamente para desconforto de quem só foi ver cinema, não pode ser normal. Ir ao cinema para pensar? Para entrar num universo imaginado por outra pessoa? Para se descobrir nas personagens que evoluem no ecrã? Nada disso, meu parvo! Tens é que levar um balde de pipocas e outro de Coca-Cola, comprar os produtos alusivos ao filme e sair como entraste: como um desejo furioso de puxar do cartão de crédito e comprar o primeiro sonho que se atravessar no teu caminho. E olhem que a metáfora é mesmo boa, pois de pipoca em pipoca, com aqueles baldes tamanho XL, já não há quem chegue ao fim e essa é a nossa situação actual: gordos como estamos não cabemos no abismo que se abre à nossa frente e ficamos entalados, exactamente como a mão papuda que procura chegar ao final do balde não por vontade mas por vício.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A Praxe Revisitada

Edvard Munch


No ano passado escrevi sobre a praxe e agora que ela nos revisita com a exuberância costumeira, decidi voltar ao tema. Do que escrevi no ano passado - e que está aí abaixo blogado para quem tiver nisso alguma curiosidade – não retiraria nada de essencial. Assim sendo, perguntarão, porquê voltar à questão? Por duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar por um impulso pedagógico, vício d’ofício, se quiserem. Quando os pedagogos eram um pouco menos pedabobos, costumava dizer-se que a repetição era a mãe de toda a pedagogia! Pois então aí está a primeira razão: repetir cansa, mas mesmo que efeito não tenha, alivia quem repete.
A segunda razão é de outra natureza. Prende-se com uma ideia que circula e vai fazendo caminho: «Este ano a praxe está diferente!» Para os defensores desta tese, a diferença notar-se ia numa maior brandura e tolerância e num vozeado menos parvo e grosseiro. Um novo caminho que se abre; um amanhã que canta; uma academia mais academia desponta, tímida mas segura, no meio do tumulto. Não são poucos os subscritores destas ideias, o que se calhar nem é mau, pois gente de fé é o que mais falta nos faz nos dias que vão correndo. Já vi títulos de jornal garantindo a mudança e tenho colegas que a asseveram com toda a seriedade e convicção. Até a reitoria contribuiu para o jubiloso clima quando, finalmente, se decidiu a mexer uma palha – foi só uma palhinha, é verdade, mas mexeu-a!
Para ser justo, devo reconhecer que eu próprio tenho ouvido menos urros e uivos, talvez menos palavrões e alarvidades. Ora, mais palavrão menos palavrão, o que é que isso vem a ser para as sólidas gentes do norte?! Fosse eu poeta ou intelectual metido a besta e faria a pergunta sacramental: «Não estaremos nós a tomar a nuvem por Juno?». Ou então, para gente menos versada em mitologia clássica, será que não são demasiados foguetes para tão pouca festa? Certo é que a reitoria fez peito: não tolera abusos e faz de cada homem e mulher, docente ou funcionário, impolutos vigilantes das regras (mas que regras?) que devem reger a praxe. Desconheço se ouve denúncia de abusos e, se as houve, que consequências terão. É razoável pensar que poucas ou nenhumas. Mas em verdade vos digo que esse nem é o ponto essencial.
Nada do que verdadeiramente conta mudou na praxe. A sua estética continua a ser exactamente a mesma e deve aqui ficar claro que ela é em si mesmo irreformável. Extinguir a lógica de submissão cega e acrítica que formata a praxe significaria, como é bom de ver, matar aquele ritual circense de enxovalho tal como o conhecemos. É verdade que os tempos correm favoráveis a essa estética sinistra, do mesmo modo que tempos houve em o sentido dominante era o contrário. Já se sabe, mudam-se os tempos…
A praxe é um reflexo de todos nós e do modo como aceitamos viver, mas é também uma lição e um ensinamento. Provavelmente uma lição mais poderosa e duradoura do que todas quantas nós consigamos transmitir aos nossos alunos. Uma lição que pode sintetizar-se no belo título que Fassbinder escolheu para um filme: «O Direito do Mais Forte à Liberdade». É ou não é esse o princípio fundamental para uma vida cordata e de sucesso? Aprender a obedecer… e aproveitar para mandar sempre que a ocasião se proporcione. Não importa em quem mandamos nem porque o fazemos; o que importa é o poder do mando e a vertigem de ser obedecido. Por isso a praxe não é um caso de polícia, é muito mais do que isso. E já que falei de cinema com outro filme acabo. Falo de Bergman e d’«O Ovo da Serpente», obra que nos mostra como o essencial do terrível mal que viria a ser o nazismo se mostrava já, muito anos antes, de uma forma tão mansa que quase parecia benigna. Talvez seja isso que anda por aí à solta, não só na praxe, bem entendido, mas em tantas coisas que vemos disfarçadas e escondidas pela fina membrana de um ovo em gestação.