quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Pague V.Ex.ª Muito Bem

Perguntou um dia o Mário-Henrique Leiria:
«O que aconteceria
se o Bispo de Beja
fosse ao Porto
e dissesse que era Napoleão?»
Ele mesmo respondeu: toda a gente acreditava que era e até o nomeavam Comendador. Ocorreu-me a pergunta do poeta quando a mim próprio me surgiu uma inquietação: O que aconteceria se os pobres endividados pelo crédito à habitação decidissem não pagar os seguros de vida a que são obrigados? Notem que falo dos seguros, não dos empréstimos, que isto, meus amigos, não é nenhuma mensagem insurreccional!
A gente chega ao banco e diz que precisa de tanto para comprar uma casa. Os tipos olham-nos, fazem uma primeira avaliação, depois pedem dados e mais dados, comprovativos de que um gajo trabalha e anda na linha, de que o patrão lhe paga o suficiente, etc. Quando a coisa os satisfaz, lá passam a maçaroca para o lado de cá. Mas é claro que não a passam assim sem mais. São finos, os tipos! Se um gajo não for filho de administrador nem nada, exigem garantias reais. Que garantias? A hipoteca da casita, pois claro! Nada mais justo: afinal estão apenas a garantir o que emprestaram. Também é justo, porém, que no final o aflito credor pergunte:
- O senhor desculpe, mas o seguro de vida é para quê?
Não tenho nada contra os seguros de vida, aviso já. Acho até que são uma coisa boa. É claro que só o são se a um gajo lhe der para morrer, e é verdade, também, que beneficiam em exclusivo os que cá ficam. Ainda assim não tenho nada a opor. O que me chateia é que me obriguem a fazer um. Em nome de quê? Para que raio quer o banco que eu faça um seguro de vida? Estará preocupado com o bem-estar da minha família? Deve ser isso: os gajos a ter uma benevolente intervenção social e eu aqui a reclamar!
Alguém desse lado vê outra explicação? Porque reparem, o empréstimo está assegurado pela hipoteca e, assim sendo, das duas uma: ou os herdeiros assumem a dívida e vão pagando o que o falecido deixou pendurado, ou então o banco fica com a casa. Não lhe interessa ficar com a casa? Meus amigos, são as contingências do negócio. Provavelmente ao falecido também não lhe interessava muito finar-se, mas a morte mafarrica levou-o mesmo assim!
A não ser… esperam lá, não, isso não pode ser! Estava aqui a pensar que a explicação podia estar na associação entre bancos e seguradoras. Que isto anda tudo ligado já a gente sabe, mas que diabo, eu não alimento teorias conspirativas!
Mas já agora, se fosse mesmo essa a razão, isso quereria dizer o quê? Que o banco, afiambrando o melhor do seu charme, diz ao promitente credor: só fazemos o empréstimo se V. Ex.ª adquirir um dos nossos produtos, e para esse efeito temos aqui, mesmo à mão, um segurito de vida que é do melhor que há! Alguém acha que isto pode ser? Nã, eu não acredito! Vejam bem, isto era o mesmo que o farmacêutico dizer que só vendia este ou aquele medicamento se o comprador lhe levasse também outra coisa qualquer, sei lá, um «Kit de Massagem Relaxe Total», ou se o tipo do talho só lhe vendesse um quilo de chambão a quem levasse também duas chouriças e uma pouca de carne entremeada. Se assim fosse um gajo passava-se! Porque diabo não nos passamos com os senhores dos bancos? Bem sei que os talhantes, e se calhar também os farmacêuticos, se lembram por vezes de promoções: «se levar o chouriço (leia-se o seguro de vida) dou-lhe o chambão (leia-se o spread) mais em conta». A diferença é que se uma cliente se chateia vai a outro talho e pronto. Não e isso que acontece com os bancos, pois ao que parece todos se puseram de acordo com a necessidade imperiosa do seguro. Isso tem um nome feio e que a lei prevê punir. Chama-se cartelização!
O governo armou-se em forte com a questão do arredondamento da taxa de juros. Os banqueiros lamentaram a falta de sensibilidade do governo para as dificuldades do negócio, mas a coisa lá se fez. A julgar pelos lucros que continuam a ter, o drama, afinal, não foi grande. Também os bancos sobreviveriam, certamente, à liberdade para contratar ou não seguros de vida. Porém, como o governo não parece para aí virado, volto à pergunta inicial: «O que aconteceria se um número significativo de credores se recusasse a pagar o seguro?» Se forem poucos, os bancos nem pestanejam: dirão que cada um deve sofrer as consequências dos seus actos e pimba, metem os recalcitrantes em tribunal. Mas se forem muitos? Cá por mim pagava para ver. Será que isto tem a ver com a velha ideia de que a união faz a força? Não sei, mas lá que devíamos experimentar isso devíamos.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Praxe: Modo de Usar




Confesso que me enganei e, assim sendo, este texto deve ser tomado como expressão de arrependimento, de pública e assumida auto-crítica, de reconhecimento da minha falta de argúcia para entender o óbvio. Minha culpa, minha máxima culpa! Aqui me desnudo e puno. Sem cilícios mas convertido!
Eu, pobre professor universitário, incomodado com o tumulto destes dias, que ano atrás de ano se repetem, achava a praxe uma coisa abominável. Confesso mesmo, tal era a minha convicção, que cheguei a achar possível contagiar os alunos com as minhas reservas.
- A praxe, além de profundamente idiota e bacoca, tem um sentido e uma estética fascista que devemos denunciar!
Isto mesmo achava eu e assim o transmitia, esperando que alguns me ouvissem e entendessem a evidência.
Vejo agora como estava enganado.
Que seria da Universidade sem a praxe? Que papel maior lhe podia caber que este que a praxe lhe oferece de mão-beijada? Mais do que quaisquer teorias, mais até que quaisquer ensinamentos práticos, daqueles a que os alunos sorriem por acreditarem (taditos…) que lhes abrem as portas do sucesso pessoal e profissional, mais do que tudo isso, é a praxe que faz o estudante.
A praxe é que induca, pá!!
- Ei, sua besta, faça isto ou faça aquilo – grita um “doutor” a um caloiro. E a besta obedece, pois claro. Que outra coisa se podia esperar de uma besta?!
Se nada mais houvesse, o que deste enunciado se retira chegava e sobrava. A obediência é uma virtude, e com este treino acelerado que a praxe universitária proporciona, fica bem claro o que convém ao entendimento do mundo.
«Menino, se soubesses o que custa mandar, não querias senão obedecer»!
Ora, esqueçam as máximas salazarentas. Pffff… ditador rústico e canastrão, que achava que era escrevendo semelhantes sandices nos livros da escola que educava o povo! A praxe, pá, a praxe é que induca. Mai nada!
- Minha besta! És uma besta, não és meu lindo?
- Sou sim, senhor doutor!
E o doutor, que já foi besta em anos anteriores, rejubila ufano no seu poder. «Filho és, pai serás», ensinava também a cartilha salazarista. «Besta és, besta serás», mesmo que te chamem de doutor a brincar. Aliás, mesmo que um dia te chamem doutor à séria, ou engenheiro, ou arquitecto, ou o que seja: de ser uma besta já te não livras. Fica-te no sangue, meu lindo. Ou então na alma. Na alma, é isso mesmo, na alma! O teu lugar no mundo, o teu entendimento do mundo, vai ficar grudado a ti. Como uma medalha. A praxe é a mais brilhante metáfora da vida que te espera. Ele há lá melhor pedagogia para aprender a servidão humana?!
- Teorias, sôtor?! A malta não quer cá teorias. Queremos coisas práticas, coisas para a gente usar no futuro, sei lá. Por exemplo, quando um gajo quiser um carro novo é alguma teoria que lho arranja, é? Filosofias, filosofias? O que uns tipos pensaram um dia em que lhe deu para ali! Na maior parte dos casos tipos sem sucesso, note-se. Quando me falaram no Sócrates ainda pensei… mas não, era outro gajo. Um barbudo que se matou. A malta devia aprender outras coisas, isso sim.
O sôtor ouve e cala-se e percebe como a praxe já está a fazer a nova universidade que todos desejam.
Todos?
Quando ainda pensava mal da praxe, eu estava convencido de que o problema era haver uma certa distracção no ar. As pessoas de bom senso andavam distraídas, mas de uma forma ou de outra alguém acabaria pondo mão no desatino. Talvez o ministro, pá. Ou os magníficos reitores…
Também nisto estava enganado e, na verdade, foi quando percebi o engano que se fez luz. O meu Magnífico, quando perguntado, disse:
- É autonomia, estúpido! Os alunos são autónomos. Pois se até têm fardamento e tudo. Como na tropa! É ou não é?!
Na altura achei que ele tinha dito o que melhor soava, mas que era outra coisa que lhe ia na cabeça:
- Os meninos, além de votarem e me escolherem, são nossos clientes e, como é sabido, os clientes têm sempre razão. Pois é, Pum! Não vá a defesa do consumidor meter-se ao barulho!
Foi o que pensei, mas reconheço que não era bem isso que estava em causa. Agora é que se fez luz e finalmente percebi tudo: há aqui uma questão estratégica, uma aposta no futuro!
A praxe é o amanhã que canta!
Andaram os totalitarismos tantos anos enganados, pá! Ele é lá precisa repressão para alguma coisa. Treinem-se uns palavrões misturados com encenações sem imaginação. Acrescentem-se uns burgessos a fingir de ditadores, regue-se bem com cerveja e espalhe-se criteriosamente por todo o campus.
Não é preciso mais nada!
Com diatadorzinhos e patetas está o futuro assegurado. Com disciplina a brincar se urde a disciplina a sério. E depois, com tamanha distracção, o que mais sobra é tempo, para que aqueles que em nós mandam nos vão tratando da vidinha.
Como de resto convém a quem ainda não conseguiu deixar de viver… habitualmente.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Atrás do tempo tempo vem, ou de como a História não é assunto arrumado.

Parecia coisa condenada a morrer no canto de um dia banal. A finar-se, triste, no lugar das coisas inúteis e ultrapassadas. Afinal, os tempos não correm de feição a lamentos nem a descontentamentos estéreis. Já todo o bom cidadão teve tempo de perceber a seriedade da crise, o atoleiro em que nos encontramos metidos e de onde, a duras penas, nos tentam tirar. Pouco importa, para o caso, que, mutatis mutandis, sejam os mesmos “artistas” que para lá nos empurraram quem agora nos atira à salvífica corda que nos resgatará.
Saiu do canto a que o bem senso a condenara e encheu o dia. Claro que nisto há o eterno problema das medidas. Basta ver os jornais: muitos fizeram questão que o dia brilhasse como era previsto, concentrando as atenções na promessa de assinatura de um tratado europeu nascido a desoras. Mas de que falo eu afinal? Que coisa foi esse que venceu a triste sina de nascer e morrer no canto sombrio do dia de ontem? Falo da manifestação, claro. Pouco me importa que tenha sido convocada pela CGTP e que a ela se colem rótulos conhecidos e, se calhar, merecidos. Juntou duzentas mil pessoas e isso não é coisa pouca. É ainda mais significativo quando a ideia da inutilidade do descontentamento se tornou tão evidente. Algo que nos é ensinado todos os dias, como a lição maior da cartilha que devemos seguir fielmente.
Duzentas mil pessoas atravessando Lisboa em protesto, tem, por força, algum significado. É fácil sugerir um momento de viragem, assegurar que os tempos estão maduros para a afirmação de uma alternativa… Existisse ela por aí, convincente e consistente, e haveria, por certo, quem a seguisse e lhe desse forma. Não é assim. Até mesmo as alternativas possíveis parecem ter sido engolidas pela sombra dos dias. Que significado podemos, então, atribuir à manifestação de quinta-feira? Na verdade ela só ganha sentido se a entendermos como um sinal a que se juntam outros. O descontentamento que vemos nas escolas e nos centros de saúde, o desconsolo de quem não encontra emprego por mais que procure, o desespero de quem não consegue nunca que o dinheiro chegue ao fim do mês. Ora, dir-me-ão, sinais de uma crise que nunca ninguém negou, que vem detrás, que é culpa dos “outros”, daqueles que fizeram tudo mal e nos deixaram a nós a pesada responsabilidade de pôr o país no rumo certo. Parece bem certa esta objecção. Nem descontentamento, nem desconsolo ou desespero parecem suficientes para sair da amarga sombra onde os arrumamos e virem tomar conta do dia. Falta-lhes, certamente, o tempero final, mas quem nos governa até esse tempero se encarregou de pôr a uso. É a raiva o tempero final. Gera-a a impotência perante o “fatalismo” de sermos o país da Europa com o maior fosso entre ricos e pobres. É filha, também, da ignorância contente das elites, que pavoneiam em capas de revista o ridículo jet set que as anima, enquanto se alimentam de benesses, trafulhices & habilidades.
Tanta conversa por uma manifestação, há-de haver quem diga. Nada se acrescentou ou se perdeu a partir dela. O mundo continua a girar, empurrado pela miséria de uns e pelo sucesso de outros. Os dias continuam brilhantes por culpa de um verão infindável, ainda que sombrios para cada vez mais pessoas. Longe de quem convocou a manifestação e também de quem a contestou, vejo nela um sinal. A recusa da inteligência, a sua substituição pelas “coisas práticas”, marca cada vez mais os nossos dias. Esforçaram-se para que acreditássemos que já tudo tinha sido dito acerca do modo como os homens vivem e querem viver. A história tinha acabado. A página final fora virada e ante os nossos olhos pacificados estendia-se a derradeira ilustração do livro: democracias consolidadas, fazendo vigorar o mais estrito principio da (aparente) alternância; liberalismo económico à la carte e reformismo social q.b., indispensável à ideia de dinamismo e modernização. A manifestação de ontem não tem mais importância que a de um sinal. Vale a pena, por isso, sublinhar o modo como saiu da sombra para vir “assombrar” o tranquilo quotidiano dos que acreditam que a história chegou ao fim. Há sempre caminhos que se abrem. Importante mesmo é saber ler os sinais.