
Um post recente suscitou comentários anormalmente abundantes para a modéstia deste blog. A eles volto, ao post e aos comentários, por nenhuma razão particular, a não ser a de despejar alguma da verborreia mental que sempre se forma depois de um almoço bem regado.
Um/a leitor/a anónimo/a, certamente que motivado/a pela nobre intenção de salvar a minha pobre alma condenada, quis partilhar comigo um longa (ex)citação. Não vejo nenhuma outra razão para que alguém que presumo não conhecer, uma vez que me trata por você, me tenha remetido tão longa prosa. Um missionário, por certo, ou então a alma imaculada da madre Teresa, que foi de Calcutá e quiçá ande agora pela Net assombrando retóricas mais ou menos desbragadas. O extracto citado pareceu-me apenas medianamente interessante, mas ainda assim agradeço penhorado a desinteressada dádiva. Bem haja!
Porquê esta mediania? Desde logo porque me parece que o autor parte de alguns pressupostos errados. Admito, com todo o fair play, que esta convicção, absolutamente pessoal, possa ser apenas um efeito do pós-almoço, mas estou absolutamente seguro que nada daquilo que o senhor diz se adequa ao que escrevi no post ou àquilo em que acredito. Por exemplo: eu, que não rejeito de forma alguma a minha parte animal, jamais recorreria à bicharada para justificar o que quer que fosse. Deus me livre e guarde! A natureza oferece-nos exemplos para tudo, mesmo para aquilo que nós nem sequer imaginamos que possa existir. Podemos até pôr de lado as coisas esquisitas, como a bicha-solitária, que apesar se solitária não deixa de pôr ovos aos biliões ou a valente fêmea louva-a-deus, que parece atingir o orgasmo arrancando a cabeça ao maridão. Deixemos tais excessos e consideremos apenas alguns “primos”, com quem partilhamos mais de 90% do código genético, os gorilas e os chimpanzés. Enquanto os primeiros acham por bem dar uma queca anual e arrumar assim a situação, os chimpanzés passam basicamente o tempo todo “naquilo”, saltando para cima de tudo o que se mexa. De qual destes casos estaremos mais próximos? De nenhum, posto que não somos gorilas nem chimpanzé mas seres humanos.
Mas esta não é a única questão que o texto levanta. Um outro problema é o da pouca importância dada ao tempo histórico. Substitui a sua complexidade por uma banalidade psicologizante: as mulheres, que se tornaram livres, são agora mais acessíveis como parceiras sexuais mas ao mesmo tempo mais ameaçadoras para o homem. Podia dizer-se de outra forma: as mulheres libertadas entopem milhões de sítios e blogs, num dilúvio de pornochachada revelador de freudianos recalcamentos dos machos ameaçados!! Ora, meus amigos, a falar verdade, tudo isto é treta superficial, com a qual não vale a pena perder grande tempo – sobretudo este tempo de qualidade que é o do pós-almoço bem regado…
Vejamos mais: o autor do ensaio citado mostra-se ressentido pela forma diferente com que, no seu juízo, se cumprem ou não cumprem contratos e compromissos. Argumenta que nos esforçamos por cumpri-los ao nível comercial ou profissional mas que não há nenhum pudor em desrespeitar aqueles que dizem respeitos aos afectos. Será porque nuns se paga multa e noutros não? Nã… deve haver outras razões, mas as que o escriba revela não passam, uma vez mais, da banal psicologia da alcova. Atrevo-me a dizer que neste ponto o autor parece um daqueles malucos que quando apontamos a lua só vê o dedo! Viver em sociedade, como há já tantos anos Rousseau percebeu, é viver num regime de contrato social. São múltiplas as dimensões implicadas neste regime de contrato e a mim parece-me bem que também os afectos se regulem por este princípio, seja ele formalizado por escrito ou apenas assumido oralmente. Qual é então o problema? Onde está o dedo e onde a lua?
O problema é o mesmo que se manifesta em todos os liberalismos, sejam eles económicos, políticos ou afectivos. É um problema de falsos pressupostos, concretamente o pressuposto de que todas as partes envolvidas se equivalem, todas jogam com as mesmas cartas e todas têm o mesmo conhecimento do jogo. Não é nunca isto que acontece. O poder existe disperso por todo o tecido social, mas daí não decorre que a sua distribuição seja igual. Ao contrário, distribui-se desigualmente e essa desigualdade de base determina todo o jogo social. Perguntarão: mas a malta não pode conversar e chegar a um consenso? Claro que pode, mas isso não obsta à desigualdade das partes. É que tudo nos distingue, até mesmo no consenso: o capital social e simbólico, os marcadores de género, a capacidade de argumentação, a experiência de negociador, etc. Ou seja, para o dizer de forma clara, os contratos, tanto os que assinamos no banco como os que estabelecemos livremente com o nosso par, podem e devem ser livremente assumidos mas isso não obsta a que um eventual carácter leonino os caracterize!
É curioso como um texto que começa por censurar o abuso de exemplos da fauna para legitimar aquilo a que chama “promiscuidade” recorra depois a um grosseiro biologismo. Tudo se reduz à ideia do macho-predador e da fémea-presa. Lugares comuns, como a incapacidade do homem expor os seus sentimentos ou a dicotomia entre dama-esposa e puta-amante, são, por isso, expressão de uma retórica desconchavada, própria de uma personagem queirosiana.
Poderá então sair-se disto? Deste desconsolo que parece condenar-nos a um desentendimento mais ou menos permanente? Por acaso eu acho que sim, mas vou deixar a revelação do segredo para outra hora. Afinal, a longa mão de Baco ampara-nos mas não nos ampara para sempre. Fico à espera de outros almoços e outros eflúvios licores. Direi apenas que esse insensato desejo de vermos o outro como extensão de nós, esse pecado que nos conduz aos mais ridículos actos e desvarios, é uma espécie de monstro sombrio que guia os nossos passos e acções. É na liberdade que nos encontramos, não na fantasia da complementaridade e simetria com que constantemente nos acenam.
2 comentários:
hehehe
Grande Verborreia que te deu! :-)
Thanks :)
--
http://www.miriadafilms.ru/ купить кино
для сайта ocantododia.blogspot.com
Enviar um comentário