segunda-feira, 31 de março de 2008

Identidades desfocadas

Paula Rego

Certificou-se primeiro da regularidade da respiração do homem e de que aquele ressonar fino e sibilante correspondia a um sono real, não sendo um artifício destinado a apanhá-la em flagrante. Quando se sentiu segura pegou nas calças que estavam dobradas numa cadeira e levou-as até aos pés da cama, para o único lugar iluminado por três estreitas frinchas abertas no estore. Não se sentia bem a fazer aquilo, mas considerava indispensável tomar aquela providência para evitar males maiores. Os segredos de um homem são a nossa condenação, murmurava baixinho, enquanto arrastava os pés, que se escondiam dentro de uns enormes chinelos peludos de fantasia.
Tirou primeiro uma carteira de cabedal castanho e arrumou-a cuidadosamente sobre a colcha branca, de tal forma que as suas linhas coincidissem rigorosamente com os feixes de luz que entravam pela janela. Meteu a mão mais fundo no bolso e encontrou o que parecia um pedaço de plástico. Procurando amarrotá-lo o menos possível, prendeu-o entre os dedos indicador e anelar, e foi desse forma que o retirou e elevou até à altura dos olhos. Estes eram pequeninos e míopes, mas o seu azul pálido faiscou quando percebeu o que tinha na mão. Era, sem dúvida, o invólucro vazio de um preservativo. Levou-o ao nariz, como se assim pudesse provar alguma coisa, e depois introduziu um dedo no rasgão e sentiu como o interior estava ainda gomoso do lubrificante. Apeteceu-lhe acordar o homem aos safanões e aos gritos e confrontá-lo com aquela prova insofismável da sua falta.
Nunca saberemos se o teria feito ou se daquela vez conteria a fúria, porque ao virar-se bruscamente na cama, o homem expôs o rosto, até aí semi-escondido entre as almofadas. A mulher sorriu. Como pudera cometer tamanho engano?! Via agora claramente que aquele não era o seu marido. Quem ali dormia, sonhando talvez com ela, era, afinal, o seu amante. Tudo se explicava e encaixava da forma que ela tanto gostava. Fora com ela que aquele preservativo fora usado. Lembrava-se bem do cheiro acre a gasolina e a napa dos estofos do velho Ford Escort. Via ainda os vidros embaciados e o modo como ele, mal contendo o desejo, rasgou com os dentes aquele invólucro que agora reencontrara.
Depois de colocar o pedacinho de plástico em perfeita simetria com a carteira e de confirmar a coincidência com os rectangulozinhos de luz, a mulher atravessou o quarto para olhar o homem de um ângulo mais favorável e voltou sorrindo para a sua tarefa. Abriu a carteira e o seu conteúdo pareceu crescer logo que a mola se soltou. Havia talões bancários e uns papéis amarelos com números de telefone anotados apressadamente. Foi tirando os cartões coloridos que espalhou metodicamente à sua frente. Abriu uma divisória plástica e descobriu algumas fotos. Em lugar de destaque estava a de uma mulher jovem e bonita. Poderia ser ela? Talvez sim, mas seguramente mais nova. Identificava os olhos azuis, mas não se lembrava de alguma vez ter usado aquele vestido preto, tão justo que revelava todas as formas de quem o vestia. As outras fotografias não a ajudaram. Mostravam duas crianças loiras e sorridentes, mas ela sabia que o seu amante não tinha filhos, ou pelo menos assim pensava. A última fotografia do conjunto surpreendeu-a. Era o seu marido, sem dúvida. Era dele aquele ar cansado e infeliz, a sombra que se pusera no seu olhar desde que ela adoecera. Como era aquilo possível?! Que sórdidos laços podiam unir aqueles dois homens da sua vida?
A respiração do homem tinha-se tornado mais pesada, acompanhando o ressonar mais audível. De repente pareceu ficar sem ar e o corpo sacudiu-se e agitou-se até recuperar o ritmo sereno de um sono profundo. A mulher voltou a olhá-lo, agora de um novo ângulo. Como fora possível?! Como pudera ela enganar-se uma segunda vez?! Fechou os olhos apertando as pálpebras, numa acusação surda àquela desagradável miopia. Agora não tinha qualquer dúvida: o homem que dormia à sua frente era o seu filho. Afinal tudo se explicava a contento. Os devaneios da juventude, ora, como se ela não soubesse o que isso era! Era importante, todavia, ficar atenta. Obrigação de mãe que estima os filhos e para eles procura o melhor. Foi por isso que se aproximou de novo da cadeira, desta vez para pegar no casaco. Sabe Deus o que um filho é capaz de esconder da mãe! Nunca as cautelas foram de mais em situações como esta.
Mal a mulher começara a inspecção dos bolsos interiores do casaco, a porta abriu-se e uma segunda mulher entrou. Pegou no braço da outra e só no corredor, após fechar a porta, lhe deu a justificada reprimenda.
- Parece impossível, Dona Lucinda. Esta mania de entrar no quarto dos hóspedes tem que acabar! Não posso deixá-la um só momento sozinha? O que diria o seu falecido marido se a visse fazer estes disparates? Volte lá para o seu quarto, e à próxima escapadela tranco-a a sete chaves. Vai ver!

quinta-feira, 20 de março de 2008

O golpe

Julian Freud


Era um objecto pesado e frio, anguloso no seu vidro fosco raiado a azul. Os quatro rasgões na sua superfície tinham marcas já antigas e irremovíveis dos incontáveis cigarros que neles tinham repousado. Na base, imperceptível a um primeiro olhar, o cinzeiro apresentava uma mossa, como que um quinto rasgão, mas este irregular, sem forma definida. Vestígio de uma pancada ou queda que deixara o vidro esfacelado e cortante naquele ponto exacto.
O cinzeiro estava vazio e limpo, quase brilhando na débil luz daquele começo de manhã. Ele estendeu a mão e como se quisesse tomar-lhe o peso faz balouçar o braço direito, sentindo o vidro polido na aspereza da mão aberta. Encolheu o dedo indicador e fê-lo coincidir com o oco, sentindo aquela textura irregular em contraste com a restante superfície, que era lisa e tão polida que chegava a colar-se à sua pele quente e um pouco húmida. O oco parecia feito à medida. O seu dedo assentava naquele buraco de forma tão perfeita que parecia ter sido feito exactamente para esse efeito. Como se fosse um gatilho.
Mantendo o objecto preso entre os dedos, o homem fechou os olhos. Os lábios finos, sombreados pela barba que despontava forte, esboçaram um trejeito de sorriso. Apenas uma insinuação de felicidade, como se a sua mente tivesse sido despertada por um desejo ou uma memória. Imaginou que fora um crime hediondo e desnecessário que provocara aquela mossa no cinzeiro. Fez um esforço para visualizar o objecto manchando de sangue o chão da cozinha e imaginou-se a si mesmo agoniado, incapaz de despegar os olhos da sombra vermelha, que escorria lentamente, arrastando consigo uma mecha de cabelos loiros.
Quando voltou a abrir os olhos, o homem ergueu o cinzeiro e apontou-o ao sol que despontava no horizonte distante. Fez com que o reflexo brilhasse na parede e depois, recordando uma brincadeira que fizera muitas vezes enquanto criança, moveu aquele clarão com rapidez ao longo da parede vazia.
Levantou-se depois desajeitadamente, como se exagerasse a dificuldade desse acto tão simples. Cambaleou um pouco às primeiras passadas e acabou por tropeçar numa garrafa vazia que se escondia entre vagas peças de roupa que se espalhavam no percurso. Quando recuperou o equilíbrio dirigiu-se à cozinha, sempre agarrando o cinzeiro na mão tensa. A mulher estava encostada ao lava-loiças como se tencionasse servir-se dele, mas sem fazer qualquer movimento. Os braços nus pendiam-lhe molemente, enquanto os dedos da mão esquerda se entretinham com as pregas da toalha em que se enrolara. A cabeça estava baixa, deixando ver a nuca magra e ossuda, e os cabelos loiros caiam-lhe nos ombros numa simetria quase perfeita. Ela percebeu que o homem se aproximava mas não se virou. Foi então que sentiu a pancada seca e certeira que a matou. A segunda pancada que se ouviu naquela manhã foi a do cinzeiro caindo no chão da cozinha. Estava manchado se sangue e na mossa irregular onde o homem descansara o dedo estava agora um coágulo acinzentado a que se agarrara ainda um punhado de finos cabelos loiros.