
Vivemos tempos estranhos. Não o digo apenas pela crise financeira ou pelos tresloucados actos que a ela conduziram. Digo-o por tudo o que nos vai cercando e conduzindo a nossa vida. Como se fosse uma segunda pele, vestimo-nos com esta capa feita de sedução e conforto, apegamo-nos a ela como se não a pudéssemos largar e por aí vamos, tão felizes quanto ligeiros, caminho de algum buraco ou abismo que adiante nos espera. Bem sei que sendo tantos os convertidos não há buraco ou abismo que nos engula. Não caberíamos nele!
Seja como for, as circunstâncias actuais levam já os prudentes a apontar o dedo e a fazer notar que talvez a capa não seja de arminho ou, se o é, talvez não tenhamos condições para verdadeiramente a ela nos enrolarmos. Dito de outra forma, deve ser hora de reajustarmos a relação entre necessidades e desejos. A ideia que foi motor fiel da nossa vida desde o final da Guerra parece ter-se esgotado. Consumir mais, sempre mais, inventar continuamente novas e imperiosas necessidades, embarcar num contínuo crescimento económico, vender a todos férias tropicais e automóveis topo de gama, esse sonho pueril de criança mimada, se não acabou de vez levou um forte abanão. Cá estaremos todos para ver que novos sonhos inventarão para nós. Sim, porque este balão que de repente esvaziou há-de de novo ser enchido para nosso deleite e paz de alma.
Apesar de apenas gostar medianamente de crianças, interessa-me o que é pueril. É um interesse casto, garanto. Uma espécie de olhar cínico para todos nós. Desta vez - nem sempre foi assim na longa história do Homem - deram-nos a volta fazendo de nós eternas crianças. Foi esse o ar com que enchemos o balão. Lembram-se daquela velha história, que Lucas nos conta no Evangelho, da tentação de Jesus pelo Diabo? «Dar-te-ei todo este poder e a sua glória (...) Se tu me adorares tudo será teu». Acho que foi mais ou menos isso que nos sucedeu. Só que Jesus era teso e disse logo, de dedo em riste, «Vai-te Satanás!», enquanto nós, que somos moles e tendencialmente obesos, aceitámos a dádiva. E assim passámos a vestir Prada, Gucci e Doce&Banana ou lá como se chama. Enfim, a consumir cada vez mais como se disso dependesse a própria vida e não pudesse haver felicidade se não dessa forma.
Tudo isto que convosco desabafo foi despoletado, imaginem só, por essa mania indizível de devorar baldes de pipocas no cinema. É apenas uma metáfora, de acordo, mas é uma boa metáfora para essa infantilização que tomou conta das nossas vidas. Homens barbados e pais de filhos, mulheres decididas e independentes, rilhando pipocas furiosamente para desconforto de quem só foi ver cinema, não pode ser normal. Ir ao cinema para pensar? Para entrar num universo imaginado por outra pessoa? Para se descobrir nas personagens que evoluem no ecrã? Nada disso, meu parvo! Tens é que levar um balde de pipocas e outro de Coca-Cola, comprar os produtos alusivos ao filme e sair como entraste: como um desejo furioso de puxar do cartão de crédito e comprar o primeiro sonho que se atravessar no teu caminho. E olhem que a metáfora é mesmo boa, pois de pipoca em pipoca, com aqueles baldes tamanho XL, já não há quem chegue ao fim e essa é a nossa situação actual: gordos como estamos não cabemos no abismo que se abre à nossa frente e ficamos entalados, exactamente como a mão papuda que procura chegar ao final do balde não por vontade mas por vício.
Sem comentários:
Enviar um comentário