
Tenho por mim a firme convicção que altura nenhuma é inadequada para evocar prazeres e com eles convocar memórias de partilhas e experiências transcendentes ou reafirmar as fantasias que nos guiam. Findo o estio, chegado, ainda que de mansinho, o suave Outono, é hora de preparar o palato para novos sabores. Ou para velhos sabores redescobertos. Deixar que as sensações tácteis, visuais e gustativas da nova estação se incorporem no nosso corpo e sejam uma porta escancarada à descoberta. A essa abertura e disponibilidade para o mundo, que, falando verdade, raras vezes usamos, podemos chamar liberdade.
É justamente o principio de uma liberdade intrínseca e irrevogável o que me fascina na imagem do libertino. Existe nesta personagem, porém, uma outra categoria, não menos importante e que igualmente me encanta: a sua inteireza ou coerência. Só por ela se pode assumir o hedonismo na sua plenitude, fazendo da busca do prazer a finalidade última de toda a acção. Não é este o lugar para discutir as implicações éticas e morais desta postura, nem para discutir as modalidades de conciliação entre a busca do prazer egoísta e a preocupação pelas outras pessoas. O objectivo é mais simples e modesto: apenas falar de sensações, de sabores e também de memórias, procurando mostrar como planos analiticamente distintos se misturam e confundem. Que outra razão pode explicar que a mesma mão que acaricia e a mesma boca que beija sejam também capazes de uma honesta volúpia.
Convoco, como a maioria dos meus ilustrados leitores certamente já perceberam, a obra seminal da arte gastronómica, De Honesta Voluptate (1470), atribuída a Platine de Crémone. Eu nem acho que exista alguma volúpia desonesta, mas lá que foi um título bem encontrado, isso foi. O Alfredo Saramago usou-o como subtítulo de um curioso livrinho a que chamou Cozinha Para Homens. Recomendo a leitura aos mais ineptos ou com falta de imaginação. Só têm que procurar a secção que lhe interessa, já que o livro se divide em cozinha para o amigo, para o amante e para o marido. Nada contra a unificação desta santíssima trindade, pelo contrário, mas em todo o caso há sempre momentos em que vestimos mais uma dessas peles que as outras, pelo que a divisão que o gastrónomo propõe não é completamente descabelada.
Desta honesta volúpia que nos prende pela boca, volto à experiência dos libertinos para vincar a coerência com que se movem na procura dos prazeres, quer dizer, o modo como sabiamente misturam planos que alguns vêem separados. Leia-se Marquês de Sade ou Casanova e perceber-se-á como a alimentação assume a importância de uma verdadeira ciência afrodisíaca. Nada de espantar: é o mundo das sensações que permite a plenitude, ou, dizendo de outra forma, tudo está ligado pelo fio dos sentidos: a selecta e requintada refeição como prelúdio para o amor e este, na medida em que nele sempre comemos e somos comidos, reenvia de novo, inevitavelmente, para o prazer de boca que o antecedeu e anunciou.
Detesto conselhos e tiradas morais e sempre peço aos amigos que me açoitem quando em tal pecado incorro. Atrevo-me, porém, a declarar que se temos que sofrer de alguma coisa antes seja de licenciosidade que de acrasia. É bem mais divertido viver o desejo sem conflito do que fugir do que sabemos ser bom. Culpa dos demónios interiores em ambos os casos, já sabemos. Mas isso prova ou não que Deus, a existir, anda um bocado distraído? Como pode querer o entendimento e a harmonia entre os seres que criou se convoca demónios tão contraditórios para nos montarem guarda?!
Deixemos de lado frágeis filosofias, as únicas que cabem nestas curtas linhas, e centremo-nos no que motivou este texto: a mudança de estação, as sensações visuais e tácteis que provoca e as memórias que a nostalgia outonal sempre trás consigo. O que importa agora é sublinhar esse percurso que vai da mão à boca, procurando potenciá-lo como caminho de sedução. Acto de amor que apela à metamorfose do desejo, confundido a boca que beija com aquela que devora. Tão voraz uma quanto a outra, por obra dessa infinita magia que se chama prazer.
E para que não fique tudo na palavra inconsequente, deixo uma sugestão aos amantes. Digamos que gostaria que fosse um modesto contributo para um amor feliz. Sugestão pensada para um começo; para aquela altura em que ainda nada aconteceu mas tudo está prometido. Aquele momento cada vez mais frequente em que o apaixonado decide surpreender a amada com uma refeição confeccionada por si.
É justamente o principio de uma liberdade intrínseca e irrevogável o que me fascina na imagem do libertino. Existe nesta personagem, porém, uma outra categoria, não menos importante e que igualmente me encanta: a sua inteireza ou coerência. Só por ela se pode assumir o hedonismo na sua plenitude, fazendo da busca do prazer a finalidade última de toda a acção. Não é este o lugar para discutir as implicações éticas e morais desta postura, nem para discutir as modalidades de conciliação entre a busca do prazer egoísta e a preocupação pelas outras pessoas. O objectivo é mais simples e modesto: apenas falar de sensações, de sabores e também de memórias, procurando mostrar como planos analiticamente distintos se misturam e confundem. Que outra razão pode explicar que a mesma mão que acaricia e a mesma boca que beija sejam também capazes de uma honesta volúpia.
Convoco, como a maioria dos meus ilustrados leitores certamente já perceberam, a obra seminal da arte gastronómica, De Honesta Voluptate (1470), atribuída a Platine de Crémone. Eu nem acho que exista alguma volúpia desonesta, mas lá que foi um título bem encontrado, isso foi. O Alfredo Saramago usou-o como subtítulo de um curioso livrinho a que chamou Cozinha Para Homens. Recomendo a leitura aos mais ineptos ou com falta de imaginação. Só têm que procurar a secção que lhe interessa, já que o livro se divide em cozinha para o amigo, para o amante e para o marido. Nada contra a unificação desta santíssima trindade, pelo contrário, mas em todo o caso há sempre momentos em que vestimos mais uma dessas peles que as outras, pelo que a divisão que o gastrónomo propõe não é completamente descabelada.
Desta honesta volúpia que nos prende pela boca, volto à experiência dos libertinos para vincar a coerência com que se movem na procura dos prazeres, quer dizer, o modo como sabiamente misturam planos que alguns vêem separados. Leia-se Marquês de Sade ou Casanova e perceber-se-á como a alimentação assume a importância de uma verdadeira ciência afrodisíaca. Nada de espantar: é o mundo das sensações que permite a plenitude, ou, dizendo de outra forma, tudo está ligado pelo fio dos sentidos: a selecta e requintada refeição como prelúdio para o amor e este, na medida em que nele sempre comemos e somos comidos, reenvia de novo, inevitavelmente, para o prazer de boca que o antecedeu e anunciou.
Detesto conselhos e tiradas morais e sempre peço aos amigos que me açoitem quando em tal pecado incorro. Atrevo-me, porém, a declarar que se temos que sofrer de alguma coisa antes seja de licenciosidade que de acrasia. É bem mais divertido viver o desejo sem conflito do que fugir do que sabemos ser bom. Culpa dos demónios interiores em ambos os casos, já sabemos. Mas isso prova ou não que Deus, a existir, anda um bocado distraído? Como pode querer o entendimento e a harmonia entre os seres que criou se convoca demónios tão contraditórios para nos montarem guarda?!
Deixemos de lado frágeis filosofias, as únicas que cabem nestas curtas linhas, e centremo-nos no que motivou este texto: a mudança de estação, as sensações visuais e tácteis que provoca e as memórias que a nostalgia outonal sempre trás consigo. O que importa agora é sublinhar esse percurso que vai da mão à boca, procurando potenciá-lo como caminho de sedução. Acto de amor que apela à metamorfose do desejo, confundido a boca que beija com aquela que devora. Tão voraz uma quanto a outra, por obra dessa infinita magia que se chama prazer.
E para que não fique tudo na palavra inconsequente, deixo uma sugestão aos amantes. Digamos que gostaria que fosse um modesto contributo para um amor feliz. Sugestão pensada para um começo; para aquela altura em que ainda nada aconteceu mas tudo está prometido. Aquele momento cada vez mais frequente em que o apaixonado decide surpreender a amada com uma refeição confeccionada por si.

Creme de chalotas com redução de Malvasia.
Corta as chalotas (250 gr. devem chegar) em quartos e leva a alourar por breves instantes em manteiga clarificada. Refresca com um cálice de vinho da Madeira de casta Malvasia. Quando as chalotas tiverem absorvido o vinho quase todo cobre-as completamente com igual quantidade de Madeira e de um bom tinto maduro. Deixa cozer em lume estupidamente brando durante uma hora e meia a duas horas. Tens que ter o cuidado de ir vigiando e acrescentado vinho, sempre em igual quantidade de maduro e Madeira. Cerca de 15 minutos antes do final da operação deves temperar com flor de sal. Passadas as duas horas de cozedura as chalotas estarão transformadas num puré avermelhado o oloroso e nessa altura deves tirar do lume, juntar cerca de 50 gr. de uma boa manteiga (recomendo à la baratte, mas se não houver serve uma boa manteiga açoriana) e mexer bem com as varas de modo a incorporar algum ar à coisa. Finalmente o último toque: uma pitada de pimenta verde moída na altura.
Tratando-se da situação enunciada – procura da vez inaugural – recomendo que o preparado seja acompanhado de um bife do lombo (ou do lombelo, caso tenhas boas relações no talho lá da rua e este te arranje esta magnífica peça absolutamente esquecida pelos nossos supermercados). Nada de acólitos pesados no prato: dispensa a tentação da batata frita e prepara uma salada de rúcula selvagem. Afinal o objectivo é aquecer a dama e não empanturrá-la! Escusado dizer que acompanha com um bom tinto maduro. Se fores rapaz de poucas posses aconselho-te um Palmela (Dona Ermelinda, por exemplo), talvez a região onde se encontra melhor relação qualidade/preço. Se estiveres medianamente abonado podes escolher melhor. Olha, por exemplo um bairradino, o Diga? - se outra razão não houver pelo curioso nome, capaz de suscitar libidinosos jogos de palavras. Agora, se fores gajo de nota preta e a amada merecer a pena, então faz uma loucura: vê se consegues ainda encontrar o último Barca Velha! Ah, e se a coisa resultar vê se te lembras da ajuda e manda-me lá uma garrafita!
As entradas deixo ao teu critério (afinal ninguém me paga para isto…), mas não dispenses uma mousse de chocolate no final. Fantástico final para um grande começo! Abençoado Toulouse Lautrec, que sendo um grande pintor e um emérito putanheiro, ainda encontrou tempo para inventar esta bênção do palato. A que tu preparares que seja leve (substitui as gemas por umas colheres de natas); servida em pequena quantidade e que deixe na boca dela - que já anseia pela tua - um travo ligeiramente amargo (usa chocolate negro e, se necessário, “reforça-o” adicionando-lhe cacau).
Boa sorte e que os deuses gastrónomos te protejam!
Tratando-se da situação enunciada – procura da vez inaugural – recomendo que o preparado seja acompanhado de um bife do lombo (ou do lombelo, caso tenhas boas relações no talho lá da rua e este te arranje esta magnífica peça absolutamente esquecida pelos nossos supermercados). Nada de acólitos pesados no prato: dispensa a tentação da batata frita e prepara uma salada de rúcula selvagem. Afinal o objectivo é aquecer a dama e não empanturrá-la! Escusado dizer que acompanha com um bom tinto maduro. Se fores rapaz de poucas posses aconselho-te um Palmela (Dona Ermelinda, por exemplo), talvez a região onde se encontra melhor relação qualidade/preço. Se estiveres medianamente abonado podes escolher melhor. Olha, por exemplo um bairradino, o Diga? - se outra razão não houver pelo curioso nome, capaz de suscitar libidinosos jogos de palavras. Agora, se fores gajo de nota preta e a amada merecer a pena, então faz uma loucura: vê se consegues ainda encontrar o último Barca Velha! Ah, e se a coisa resultar vê se te lembras da ajuda e manda-me lá uma garrafita!
As entradas deixo ao teu critério (afinal ninguém me paga para isto…), mas não dispenses uma mousse de chocolate no final. Fantástico final para um grande começo! Abençoado Toulouse Lautrec, que sendo um grande pintor e um emérito putanheiro, ainda encontrou tempo para inventar esta bênção do palato. A que tu preparares que seja leve (substitui as gemas por umas colheres de natas); servida em pequena quantidade e que deixe na boca dela - que já anseia pela tua - um travo ligeiramente amargo (usa chocolate negro e, se necessário, “reforça-o” adicionando-lhe cacau).
Boa sorte e que os deuses gastrónomos te protejam!
1 comentário:
hehehehehe
Eu quero!! ;-)
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