terça-feira, 4 de novembro de 2008

Remington




Christian Coigny


Com a solenidade que há muito encenara escreveu as derradeiras letras: «FIM». Finalmente aquelas letras, conjugação de astros no horóscopo prometido. Colocou ambas as mãos na pilha de papel dedilhado a máquina de escrever e evocou aqueles longos meses de penoso trabalho. Lançou a baforada cinzenta que retivera nos pulmões sobre as teclas marmóreas e ficou a ver como o fumo as envolvia. Adorava cenários íntimos e decadentes. A virtude do ícone na era da informática! Que outra razão para insistir em escrever numa velha, velhíssima, Remington? Queria para si uma imagem tão forte como aquele aço temperado - Remington misturando-se com o seu nome, a máquina como extensão do corpo, os dedos precisos acariciando as teclas com ternura de amante.
Viver num cenário! Fascinava-o a ideia, vendo nela um vislumbre de perfeição. Bem sabia que o cenário é apenas a parte que deixamos ver e queremos mostrar, caminho indispensável contornando a verdade. Era cenário a batida compassada das teclas e a imperfeição das letras pela usura do chumbo após tantos anos de uso. Por exemplo, a cabecinha do a como testa partida ao meio, ou o x que parecia querer imitar o y. Imperfeições que eram sinais, manchas de sublime humanidade na obra que acabara de escrever. «Breves imperfeições para realçar um sublime amor». Anotou-o a frase no canto de uma página. Não se esqueceria de a usar quando chegassem as entrevistas que lhe dariam o merecido reconhecimento.
Caminhou até ao quarto pensando no sucesso e no modo como iria lidar com ele. Nada que o preocupasse verdadeiramente. Aquela escrita sofrida não o impedira de se preparar para o êxito. Antecipava mesmo a amargura que o sucesso transporta consigo. Tudo escrito nas estrelas com esse mesmo chumbo, cansando mas indelével, dos caracteres imperfeitos: fortuna e perda, sorte e azar, fita bicolor correndo na velha Remington, continuamente batida até que a tinta se esgote. Que outra coisa pode contar mais que a oscilação do eterno pêndulo? Que virtude acima da capacidade de descrever o encanto que nos arrebata e a tragédia que nos destrói? A tinta espirrada no papel, alinhando palavras letra a letra, até ao momento em que a magia se suspende e o chumbo bate no papel sem o imprimir. Também aí corpo e máquina como um só. A dor dos momentos vazios em que também ele ficava em branco, exactamente como o papel correndo na pesada Remington sem fita. Era nessas ocasiões, nesse mergulho no imenso deserto branco, que mais precisava dela. Da sua voz e do seu olhar. Palavra e gesto numa harmonia que o tranquilizava quando lhe dizia: «As palavras vão continuar a crescer. Não te inquietes. Por vezes há momentos em que tudo morre para logo renascer mais forte». Só mesmo ela poderia dizer algo que se ajustava de forma tão perfeita ao seu impúdico desejo de querer ser outro a cada dia. Morte e renascimento, ciclo perpétuo de mil vidas atravessadas numa só, articuladas todas elas pelo ritmo das palavras que flúem e se retraem.
Deitou-se ao lado da mulher com vontade de a abanar ternamente para lhe contar que finalmente acabara. Que a fiel Remington escrevera as derradeiras letras e que aquele «FIM» batido com raiva era um compromisso de mudança. Dizer-lhe que ele próprio se esgotara e sabia que a esgotara a ela, mas que agora, fim de ciclo, tudo recomeçaria. Morte e renascimento. Quis acordá-la e falar-lhe de tudo isto, mostrar-lhe como o horizonte se desanuviara e enchera de promessas. Tocou-a levemente, quase a medo, e achou-a fria, distante, quase sopro gélido saindo daquele corpo em profundo repouso. Corpo exaurido, gasto, consumido no desvairado processo de traduzir na palavra o louco amor que os unia. Fora isso mesmo que ele fizera: em cada tecla batida na velha máquina, em cada palavra composta, um pedaço daquele amor. Súplicas, desejos, esperanças, mesmo os beijos que ficaram suspensos entre os lábios e o papel. Aquele amontoado de folhas dactilografadas era a sua obra e a alma dela.
Sempre soube o risco que corria, mas haverá outra forma de mostrar o amor a quem nunca o viveu? O amor feito palavra, não o retrato falado de um amor. Uma essência arrancada gota a gota do mais profundo esconderijo do amante para deleite e instrução dos demais. Párias, desapaixonados, infiéis, futuros amantes… tanta gente esperando a sua obra! Ali estava ela – e o homem, de novo de pé, punha a sua mão cansada sobre as folhas como se avaliasse o resultado do empreendimento. «O mistério da transmutação», sussurrou repetidamente. O corpo e a alma de tal forma vertidos para o papel que bastaria amassá-lo para dele escorrerem mel e lágrimas. Beleza e sofrimento, criação e morte.
Este foi o momento preciso e irrepetível em que o homem percebeu a perda. Tocou no ombro da mulher e não sentiu nem o calor que desejava nem o frio que temia. Apenas uma moleza sem vida, invólucro vazio testemunhando a perfeição da sua obra. Tinham sido os seus dedos a transformar aquela vida em palavras ditadas febrilmente à velha Remington. Gota a gota, quase sem dor, conseguira aprisionar na escrita toda a alma dela. Não o sangue mas a alma - invisível, sem substância, pingando a cada batida das teclas, com ela se esvaindo o amor mas apenas para renascer num lugar sem tempo, finalmente eternizado em palavras vivas.
O homem retirou a mão do ombro da mulher e colou-se a ela. Sentia agora um frio tão intenso como se abraçasse uma estátua de gelo. «O mistério da transmutação», repetiu. «Ao mistério da transmutação esta morte por expiar». Uma coisa valendo a outra. À honra o castigo; ao assombro de quem lê a dor de quem escreve. Deixando a mulher, o homem voltou à máquina de escrever. Acertou o papel branco no cilindro e estalou os dedos. Um prefácio! Sim, um bom prefácio poderia redimi-lo. Sorriu ao escrever. Sabia que bastaria uma parte da sua alma vertida no papel para apaziguar a justa censura das almas alheias.


Gian Lorenzo Bernini

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