sexta-feira, 28 de novembro de 2008

100 anos são muitos dias!



Claude Lévi-Strauss completa hoje 100 anos, pelo que fica demonstrado que não é só a realizar filmes aborrecidos que se chega a tão provecta idade. Como um blog não é um livro de efemérides nem sequer um apartado de alguma enciclopédia, não falarei aqui da figura nem propriamente do seu trabalho. Reterei apenas um aspecto (quem quiser saber mais é fácil googlear ou coisa assim...), exactamente a importância que Lévi-Strauss dedicou à diferença cultural e à sua preservação.
A sua ideia é fácil de entender mas nunca foi fácil de implementar: se quisermos entender o Homem na sua plenitude temos que o conhecer nas suas múltiplas expressões, pelo que nos devemos empenhar na compreensão das diferenças e na sua preservação. Daqui decorre uma conversa conhecida mas que nem por isso altera as práticas sociais e políticas: por cada cultura ou língua que desaparece, desaparece também uma parte daquilo que somos enquanto humanos. Pareceu-me uma boa maneira de lembrar o velho sábio: evocar este desejo de entender o outro e esta crença na nossa capacidade de o fazer. Ocorre-me também perspectivar os próximos 100 anos e neles que bom seria se, no plano estritamente individual, todos nós fizermos também um esforço para aceitar o outro tal-qual ele é. Coisa fácil? Nem tanto assim. Haveria que resistir a essa tentação de nos tomarmos como padrão e aprendermos a ver no que nos separa dos outros não uma ameaça ou um desafio mas uma oportunidade de nos enriquecermos.
Nota final: quando falo desta aceitação da diferença não estou a pensar apenas naqueles de que mais facilmente nos distinguimos - seja pela cor da pele ou origem social. Falo de algo mais amplo e omnipresente: o que nos distingue dos nossos próximos, dos companheiros no sentido próprio do termo, ou seja, aqueles com quem partilhamos o pão, mas também das pessoas com quem partilhamos o leito e a vida. É por aí, por esse desafio de proximidade feita de diferença, que o caminho deve começar.




segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Amor-humor

Martin Van Maele



Abençoado modernismo brasileiro, que não só nos deu a conhecer o impagável Macunaíma e nos deslumbrou com as telas de Tarsila do Amaral como nos legou também a fantástica sabedoria do amor contida no célebre poema de Oswald de Andrade:


Amor
Humor



Não sei se a literatura em língua portuguesa tem algum poema mais curto que este mas estou certo de que poucos se lhe igualam em assertividade e inspiração.
Prova provada de que, pelo menos neste campo, o tamanho não é realmente importante, o poema de Oswald contém todo um projecto de vida e uma inspiração de consumação existencial: fazer sorrir o nosso par! Claro que não é apenas isso, pois o amor não é uma comédia de costumes. Pode até dizer-se que o mais decisivo se encontra noutro lugar do poema - sim, eu sei que é estranho, mas mesmo num poema tão pequenino podemos encontrar recantos escondidos! Falo da dessacralização do amor, dessa arremetida contra a certeza da dor que parece prefigurar cada relação. Amar é sofrer de amor. Sofremos pela dúvida, mas se não a tivermos sofremos pela convicção de que a certeza não pode durar sempre. Podemos também sofrer pela violência da paixão muito embora não deixemos de sofrer quando essa mesma paixão nos ignora e nos passa ao lado. Afinal, talvez o sofrimento seja um alimento indispensável para a alma mas se assim é que o riso seja o digestivo para tão pesado alimento! Amor/Humor? Sem dúvida que sim! Antes isso que um rebuscado lirismo, daqueles que sempre dão mau resultado!
É mentira o que digo? Consideremos então o que diz o vate:

Amor é fogo que arde sem se ver
(Diacho, bem sabemos que o homem tinha só um olho operacional, mas ainda assim parece-me incrível que não tenha visto o que queima o olhar! «Fogo que arde sem se ver»?! Como pode alguém que amou de verdade não ter visto a sua amada em chama viva? Confesso que não entendo, mas a burrice será realmente minha?).

É ferida que dói e não se sente
(Ai não que não se sente! Gajo insensível, heim! Deve ser por estas e por outras que se criou essa ideia peregrina de que o homem apenas sente e pensa pela pila! O caraças: a gente sente e vê a ferida, mexemos até nela e como por vezes temos ainda os dedos sujos com as cinzas dos amores que nos feriram acabamos por agravar dor e ferida...).

É um contentamento descontente
(Com esta é que eu me passo de vez! «Contentamento descontente»? É este o ponto; é este o mal! Tal a demência de quem assim ama que já nem a alegria sente como alegria. Contentamento descontente não é bem ficar trombudo depois do acto, mas no mínimo é ficar seráfico e virar costas ao diabinho que nos puxa o sorriso alvar de quem se lambuzou todo de chocolate e menta e está com vontade de voltar ao pote!).

É dor que desatina sem doer
(Quem desatinaria seria eu se acaso continuasse com este exercício de olhar o poeta no seu desvario! Melhor ficar por aqui, até porque para ilustração já basta assim!).

Martin Van Maele

Num conhecido ensaio, Henri Bergson defende que "o riso não tem inimigo maior do que a emoção". Para ele, "numa sociedade de inteligências puras provavelmente deixaríamos de chorar, mas talvez continuassemos a rir; ao passo que um mundo de almas invariavelmente sensíveis, afinadas em uníssono pela vida, onde todo e qualquer acontecimento se prolongasse numa ressonância sentimental, não conheceria nem compreenderia o riso".
Se Bergson o diz quem sou eu para desdizer? Mas que sucede quando amor se conjuga com humor, como no brilhante achado de Oswald de Andrade?



Amor

Humor


Casamento espúrio, acham mesmo que é? Eu não acho. Para além de rimarem, amor e humor têm em comum o facto de só poderem ser feitos acompanhados. É claro que podemos ter prazer sozinhos e rir sem que ninguém nos acompanhe, mas mesmo nesses casos há uma dimensão evocativa que implica um outro. E depois há ainda o valor facial das palavras, a sua história e espessura. Todos nós sabemos (pelo menos assim espero...) como o amor carnal, esse tesão que nos devora e consome, se transmuta em humidade - seja ela suor, saliva ou tudo o mais. Ora bem, é ou não verdade que essa humidade tem a sua raiz em húmus, que não é senão a matriz latina da palavra humor?! E atrever-se-á alguém a declarar que o amor, na sua expressão vibrante de sexo consolador e festivo, não melhora o nosso estado de alma? Não há como negar: alegria e bom humor têm uma relação umbilical com o prazer e este, mesmo recusando tomar a parte pelo todo, tem no sexo um importante pilar.

Mas tem ainda uma outra dimensão nesse feliz casamento entre amor e humor. Já o referi e com ele finalizo: a possibilidade de dessacralizar o afecto sem que a paixão se perca. Sempre temos um problema quando falamos de amor: há um excesso de sentido para um vocabulário demasiado limitado. O amor pode ser muitas e variadas coisas e as palavras de que dispomos para o caracterizar são claramente insuficientes. Ainda que esteja longe de ser a única razão, é também por isto que os desacertos afectivos são tão inevitáveis. São esses desacertos, sejam eles pontuais ou estruturais, que fazem a nossa história afectiva e essa história, que constantemente reescrevemos, soa sempre melhor quando nos servimos do humor para a colorir. Dói menos assim e, se querem mesmo saber, eu até acho que fica mais verdadeira quando a contamos de modo a que dela possamos sorrir. Ou rir a bandeiras despregadas... depende dos casos e dos acasos.




Martin Van Maele

Apanhado a fumar!

Rick Castro


Este post marca uma novidade absoluta neste blog! OK, é verdade que pela primeira vez aparece aqui um homem nu, mas não é essa a novidade absoluta a que me refiro. Trata-se antes de uma questão técnica. Sempre, até hoje, tenho partido da escrita, sendo em função dela que a imagem se revela, surgindo, assim, como ilustração mais ou menos evocativa do que foi escrito. Desta vez segui o procedimento inverso: foi a foto que acompanha este texto e o título que Rick Castro lhe deu que motivaram estas linhas.
«Apanhado a fumar», declara o autor! Existe na foto uma evidente vontade de provocar e de se servir do humor para piscar o olho a quem observa. Porém, o que mais me interessa nesta foto é o que ela sugere acerca das ideias de transgressão e de castigo. A ambiguidade destes dois vectores é por demais evidente: a transgressão não é para levar a sério e o castigo contém em si mesmo uma forte sugestão de prazer, sendo que é nesta sugestão que está contida, verdadeiramente, a dimensão transgressiva. Tudo se reduz, portanto, a uma encenação feita a partir de um conteúdo narrativo conhecido e que o autor reescreve. Sei que esta é apenas uma interpretação entre outras possíveis, mas foi essa a leitura que conduziu o meu olhar e também é ela que orientará o meu argumento.
A provocação, pois também aqui é de uma provocação que se trata, é a de sugerir que olhemos para os afectos reais a partir desta matriz cénica. A hipótese de partida é a de que hoje em dia tende a afirmar-se um regime afectivo em que a neutralização da transgressão se faz recorrendo a uma transgressão maior. Consideremos uma transgressão banal aos convénios matrimoniais ou para-matrimoniais como é o adultério. Em torno dele existe um conjunto de narrativas conhecidas e mais ou menos cristalizadas, as quais enfatizam temas como o da traição, da destruição dos lares ou de uma distinta tolerância em função do género, entre outros. Sem dúvida que a valorização de uma sexualidade mais activa e participada obrigou a uma reformulação destas narrativas, mas ela teve, porém, um efeito ainda mais espectacular! Estou a falar da neutralização desta forma de transgressão pela exponenciação de uma transgressão maior! A multiplicação do swing (há sites que têm centenas de casais inscritos) ou a frequência, por parte do casal, de locais dedicados ao sexo - sejam eles físicos, como uma sexshop, ou virtuais, por exemplo sites com conteúdo explícito - evidenciam essa transgressão partilhada.
Esta assumpção da transgressão tem um efeito paradoxal: não só neutraliza os efeitos contidos nas narrativas acerca da infidelidade como domestica a própria transgressão. Tal como sucede na foto de Rick Castro, crime e castigo ficam restringidos a um efeito cénico, ou seja, são contidos no acto ritual a que passam a pertencer. De facto, muito embora esta transgressão domesticada se expresse de várias formas, no essencial está contida num espaço e num tempo definido, sendo essa a marca mais evidente da transformação em ritual. A dimensão cénica e performativa pode até ser mais realçada se considerarmos que muitos dos comportamentos assumidos não chegam nunca a concretizar-se. A transgressão pode, efectivamente, ser apenas um simulacro sem que por isso perca eficácia. Anunciar a disponibilidade para cometer a transgressão significa corporizar uma narrativa que contém eficácia simbólica: converte-nos em agentes de uma forma (pós) moderna de viver o amor.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Antes asno que me carregue...

Robert Mapplethorpe



Uma muito querida amiga, reflectindo sobre as agruras de infidelidade, sublinhava há uns dias a inconveniência dos amores com pessoas demasiado interessantes. Inteligente como é (note-se que, por definição, todas as minhas amigas primam pela inteligência), achou por bem caracterizar a situação a partir de um locus masculino. Um homem que ande com uma mulher muito bonita, dizia ela, tem sempre o problema de saber que inúmeros outros homens a desejam e se esse conhecimento não gera insegurança ou incerteza, alimenta, pelo menos, o receio de a perder. Julgo que não estou a desvirtuar o seu pensamento se disser que o «bonito» pode aqui ser estendido a outros atributos como o charme ou a inteligência. De qualquer forma, independentemente do factor distintivo ser a inteligência ou a beleza física, o argumento não podia ser mais claro. Ainda que sem certezas definitivas sobre a resposta ao dilema, a minha amiga ponderava se não seria preferível uma relação com alguém medianamente interessante e fiável do que com alguém verdadeiramente interessante mas mais susceptível às tentações. Cá para mim, bonitos ou feios, inteligentes ou broncos, ninguém é de ferro. Ou seja, a fiabilidade é uma variável independente, pelo que a argumentação me parece ter um efeito mais retórico que clarificador.
Foi por isso, e também porque gosto de imagens fortes, que lhe disse logo na cara: «O que tu me estás a dizer é que preferes asno que te carregue a cavalo que te derrube». Na verdade não era bem isso. Ela não queria um burro-burro nem tampouco um feio-feio, como rapidamente percebi pela sua manifestação de desagrado. É claro que eu, atreito como ando a mal-entendidos, me apressei a contemporizar. Declarei de mão no peito que nada me move contra os simpáticos asininos e menos ainda contra os feios. Depois, convencido que um pouco de erudição fica bem em qualquer conversa, evoquei Boris Vian, escritor que muito me agrada, para assegurar que jamais me passaria pela cabeça fazer do título do seu conhecido policial, Morte Aos Feios, um slogan evocativo e menos ainda um princípio de vida. Como isso não chegou para a tranquilizar, procurei mostrar-lhe que a beleza vale bem pouco e que a culpa desse baixo valor não tem sequer a ver com o sossego que nos é roubado quando o nosso par é demasiado interessante. A beleza, quando muito, alimenta o ego mas deixa o corpo à míngua, ou seja, como diria o nosso inestimável povo, «cantoria sem comedoria é gaita que não assobia». Portanto, teima de cigarra que não aprende com velhas fábulas. Percebendo no seu olhar a sombra evidente do cepticismo, fiz-lhe ver que muita e diversa gente percebera esta verdade na pele. Lembras-te do inspirado Allen Ginsberg e da pergunta que formulou no doutrinário poema América: «Quando poderei eu entrar no supermercado e comprar tudo o que preciso com a minha beleza?». Ela lembrava-se e desconfia, tal como eu, que também neste caso a beleza de nada valeu: por certo o ilustre poeta morreu sem se livrar de pagar as contas da mercearia.
Bem sei que com esta conversa me desvio do ponto essencial da conversa e da inquietação da minha amiga. O ponto fundamental é o do equilíbrio entre razão e paixão. Ela bem o sabe e por muito que queira ser possuída pela razão, há sempre um pedacinho irredutível dela mesma que lhe prega uma rasteira e a atira para os braços da paixão. É por isso que evocar um «ponto de equilíbrio» é só uma forma de falar. Digamos que é uma espécie de aspiração apaziguadora ou uma promessa de serenidade. Poder-se-á dizer que um compromisso entre o burro e o cavalo? Hummm... talvez não, posto que os hibridismos funcionam mal neste delicado campo dos afectos. A não ser que a proposta de compromisso se manifeste numa alimária mitológica: o unicórnio! Belo animal, sem dúvida - além de sugestivamente fálico!
Por tudo isto, em verdade te digo: façamos sem hesitação o caminho que nos apetece. Quanto aos trilhos que ficaram para trás, para esses nem vale a pena olhar, pois que de estátuas de sal já todos temos a nossa conta. Dizendo o mesmo de outra forma: burro, alazão ou unicórnio, que se funda montada e montador e assim, nesses preparos, que ambos percorram caminhos capazes de os encantar.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Pero… hay gobierno?


Como a confissão alivia a alma, começo por uma declaração de interesses. Eu sinto-me sempre como o conhecido anarquista espanhol que foi empurrado para o exílio mexicano pelas tropas fascistas de Franco. Figura respeitada, foi logo cercado à chegada por um bando de jornalistas nativos que lhe pediram um comentário à disponibilidade do governo mexicano para o receber. Olhando-os com genuíno espanto exclamou de pronto: «Pero, hay gobierno? Soy contra!».
Tal como para ele, também para mim a questão não é ser este ou aquele a governar. Sou contra e pronto! Isto não significa que não existam governantes ou momentos de governação que estimulem particularmente esta minha aversão a quem manda e ao próprio acto de mandar. É assim que me sinto hoje, ao pensar nos atolambados que nos calharam em sorte. Este sentimento foi despoletado por uma notícia de rodapé que vi esta tarde num jornal gratuito: o nosso inefável primeiro-ministro garantiu que até ao final do primeiro trimestre de 2009 Portugal seria o único país do mundo em que todas as crianças dos primeiros anos de escolaridade terão um computador! Bem pode o mundo inteirinho roer-se de inveja. Verdade! Hão-de os nórdicos roer as unhas até ao sabugo com inveja do nosso querido Magalhães. Fiquem lá os noruegueses com o bacalhau, os suecos com os armários e os roupeiros e os finlandeses com os telemóveis, que a nós é que ninguém pára! O primeiro país do mundo! É obra! Claro que deve dar direito a entrar no livro dos recordes. Ao lado da maior feijoada e do empregado de mesa equilibrista! No mesmo jornal gratuito (leitura que vou alternando com A Bola) li também que a filha de Katie Holmes e Tom Cruise, uma tal de Suri, está no lote das crianças mais fotografadas do mundo. Talvez isso seja uma sorte ou um azar, pouco importa, mas vocês acham que a pequenita Suri tem um Magalhães?! Nem pó! Mas se tiver sorte, pode ser que o Zé Sócrates vá dar uma daquelas suas corridas de calção e guarda pretoriana pelas ruas de Hollywood e lhe leve a mais desejada das prendas: o computador Tintim.
Juro que quando falei de «pó» não estava a fazer nenhuma insinuação maldosa, mas lá que parece que alguma coisa anda a toldar o juízo desta tropa, lá isso parece. Então não bastava já aquela manifestação de pura piroseira pacóvia quando o nosso José decidiu presentear os líderes ibero-americanos com a maquineta? Bem fez o estouvado do Hugo Chavez que logo o arremessou (sabe deus a quem) para assim se assegurar da solidez do presente. Insinua-se que o presidente Lula sambou sobre ele com grande donaire e uma fonte geralmente bem informada garantiu-me que o nosso José está a negociar com uma escola de samba a adopção do Magalhães como tema para o próximo desfile de Carnaval.
E assim vamos, cantando e rindo, esperando, como sempre esperámos, a vinda de um Salvador que faça de nós o que queremos mas não conseguimos ser. A vez agora é do Magalhães. Símbolo da mais elevada tecnologia lusitana, é ele que nos vai redimir e salvar. Salvar de quê?! Não dos políticos que temos, que a tanto não chega o brinquedo azul. Mas redimir-nos-á do nosso atraso secular e da mansidão com que nos ensinaram a viver a vida e a aceitar as injustiças sociais. Redimir-nos-á pela certa. Afinal, mesmo que falte a sopa e o pão às inocentes criancinhas, o Magalhães as consolará!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Da selva do desejo ao contrato redentor

Aldo Palazzolo

Um post recente suscitou comentários anormalmente abundantes para a modéstia deste blog. A eles volto, ao post e aos comentários, por nenhuma razão particular, a não ser a de despejar alguma da verborreia mental que sempre se forma depois de um almoço bem regado.
Um/a leitor/a anónimo/a, certamente que motivado/a pela nobre intenção de salvar a minha pobre alma condenada, quis partilhar comigo um longa (ex)citação. Não vejo nenhuma outra razão para que alguém que presumo não conhecer, uma vez que me trata por você, me tenha remetido tão longa prosa. Um missionário, por certo, ou então a alma imaculada da madre Teresa, que foi de Calcutá e quiçá ande agora pela Net assombrando retóricas mais ou menos desbragadas. O extracto citado pareceu-me apenas medianamente interessante, mas ainda assim agradeço penhorado a desinteressada dádiva. Bem haja!
Porquê esta mediania? Desde logo porque me parece que o autor parte de alguns pressupostos errados. Admito, com todo o fair play, que esta convicção, absolutamente pessoal, possa ser apenas um efeito do pós-almoço, mas estou absolutamente seguro que nada daquilo que o senhor diz se adequa ao que escrevi no post ou àquilo em que acredito. Por exemplo: eu, que não rejeito de forma alguma a minha parte animal, jamais recorreria à bicharada para justificar o que quer que fosse. Deus me livre e guarde! A natureza oferece-nos exemplos para tudo, mesmo para aquilo que nós nem sequer imaginamos que possa existir. Podemos até pôr de lado as coisas esquisitas, como a bicha-solitária, que apesar se solitária não deixa de pôr ovos aos biliões ou a valente fêmea louva-a-deus, que parece atingir o orgasmo arrancando a cabeça ao maridão. Deixemos tais excessos e consideremos apenas alguns “primos”, com quem partilhamos mais de 90% do código genético, os gorilas e os chimpanzés. Enquanto os primeiros acham por bem dar uma queca anual e arrumar assim a situação, os chimpanzés passam basicamente o tempo todo “naquilo”, saltando para cima de tudo o que se mexa. De qual destes casos estaremos mais próximos? De nenhum, posto que não somos gorilas nem chimpanzé mas seres humanos.
Mas esta não é a única questão que o texto levanta. Um outro problema é o da pouca importância dada ao tempo histórico. Substitui a sua complexidade por uma banalidade psicologizante: as mulheres, que se tornaram livres, são agora mais acessíveis como parceiras sexuais mas ao mesmo tempo mais ameaçadoras para o homem. Podia dizer-se de outra forma: as mulheres libertadas entopem milhões de sítios e blogs, num dilúvio de pornochachada revelador de freudianos recalcamentos dos machos ameaçados!! Ora, meus amigos, a falar verdade, tudo isto é treta superficial, com a qual não vale a pena perder grande tempo – sobretudo este tempo de qualidade que é o do pós-almoço bem regado…
Vejamos mais: o autor do ensaio citado mostra-se ressentido pela forma diferente com que, no seu juízo, se cumprem ou não cumprem contratos e compromissos. Argumenta que nos esforçamos por cumpri-los ao nível comercial ou profissional mas que não há nenhum pudor em desrespeitar aqueles que dizem respeitos aos afectos. Será porque nuns se paga multa e noutros não? Nã… deve haver outras razões, mas as que o escriba revela não passam, uma vez mais, da banal psicologia da alcova. Atrevo-me a dizer que neste ponto o autor parece um daqueles malucos que quando apontamos a lua só vê o dedo! Viver em sociedade, como há já tantos anos Rousseau percebeu, é viver num regime de contrato social. São múltiplas as dimensões implicadas neste regime de contrato e a mim parece-me bem que também os afectos se regulem por este princípio, seja ele formalizado por escrito ou apenas assumido oralmente. Qual é então o problema? Onde está o dedo e onde a lua?
O problema é o mesmo que se manifesta em todos os liberalismos, sejam eles económicos, políticos ou afectivos. É um problema de falsos pressupostos, concretamente o pressuposto de que todas as partes envolvidas se equivalem, todas jogam com as mesmas cartas e todas têm o mesmo conhecimento do jogo. Não é nunca isto que acontece. O poder existe disperso por todo o tecido social, mas daí não decorre que a sua distribuição seja igual. Ao contrário, distribui-se desigualmente e essa desigualdade de base determina todo o jogo social. Perguntarão: mas a malta não pode conversar e chegar a um consenso? Claro que pode, mas isso não obsta à desigualdade das partes. É que tudo nos distingue, até mesmo no consenso: o capital social e simbólico, os marcadores de género, a capacidade de argumentação, a experiência de negociador, etc. Ou seja, para o dizer de forma clara, os contratos, tanto os que assinamos no banco como os que estabelecemos livremente com o nosso par, podem e devem ser livremente assumidos mas isso não obsta a que um eventual carácter leonino os caracterize!
É curioso como um texto que começa por censurar o abuso de exemplos da fauna para legitimar aquilo a que chama “promiscuidade” recorra depois a um grosseiro biologismo. Tudo se reduz à ideia do macho-predador e da fémea-presa. Lugares comuns, como a incapacidade do homem expor os seus sentimentos ou a dicotomia entre dama-esposa e puta-amante, são, por isso, expressão de uma retórica desconchavada, própria de uma personagem queirosiana.
Poderá então sair-se disto? Deste desconsolo que parece condenar-nos a um desentendimento mais ou menos permanente? Por acaso eu acho que sim, mas vou deixar a revelação do segredo para outra hora. Afinal, a longa mão de Baco ampara-nos mas não nos ampara para sempre. Fico à espera de outros almoços e outros eflúvios licores. Direi apenas que esse insensato desejo de vermos o outro como extensão de nós, esse pecado que nos conduz aos mais ridículos actos e desvarios, é uma espécie de monstro sombrio que guia os nossos passos e acções. É na liberdade que nos encontramos, não na fantasia da complementaridade e simetria com que constantemente nos acenam.

sábado, 8 de novembro de 2008

Da mão à boca: a honesta volúpia


Tenho por mim a firme convicção que altura nenhuma é inadequada para evocar prazeres e com eles convocar memórias de partilhas e experiências transcendentes ou reafirmar as fantasias que nos guiam. Findo o estio, chegado, ainda que de mansinho, o suave Outono, é hora de preparar o palato para novos sabores. Ou para velhos sabores redescobertos. Deixar que as sensações tácteis, visuais e gustativas da nova estação se incorporem no nosso corpo e sejam uma porta escancarada à descoberta. A essa abertura e disponibilidade para o mundo, que, falando verdade, raras vezes usamos, podemos chamar liberdade.
É justamente o principio de uma liberdade intrínseca e irrevogável o que me fascina na imagem do libertino. Existe nesta personagem, porém, uma outra categoria, não menos importante e que igualmente me encanta: a sua inteireza ou coerência. Só por ela se pode assumir o hedonismo na sua plenitude, fazendo da busca do prazer a finalidade última de toda a acção. Não é este o lugar para discutir as implicações éticas e morais desta postura, nem para discutir as modalidades de conciliação entre a busca do prazer egoísta e a preocupação pelas outras pessoas. O objectivo é mais simples e modesto: apenas falar de sensações, de sabores e também de memórias, procurando mostrar como planos analiticamente distintos se misturam e confundem. Que outra razão pode explicar que a mesma mão que acaricia e a mesma boca que beija sejam também capazes de uma honesta volúpia.
Convoco, como a maioria dos meus ilustrados leitores certamente já perceberam, a obra seminal da arte gastronómica, De Honesta Voluptate (1470), atribuída a Platine de Crémone. Eu nem acho que exista alguma volúpia desonesta, mas lá que foi um título bem encontrado, isso foi. O Alfredo Saramago usou-o como subtítulo de um curioso livrinho a que chamou Cozinha Para Homens. Recomendo a leitura aos mais ineptos ou com falta de imaginação. Só têm que procurar a secção que lhe interessa, já que o livro se divide em cozinha para o amigo, para o amante e para o marido. Nada contra a unificação desta santíssima trindade, pelo contrário, mas em todo o caso há sempre momentos em que vestimos mais uma dessas peles que as outras, pelo que a divisão que o gastrónomo propõe não é completamente descabelada.
Desta honesta volúpia que nos prende pela boca, volto à experiência dos libertinos para vincar a coerência com que se movem na procura dos prazeres, quer dizer, o modo como sabiamente misturam planos que alguns vêem separados. Leia-se Marquês de Sade ou Casanova e perceber-se-á como a alimentação assume a importância de uma verdadeira ciência afrodisíaca. Nada de espantar: é o mundo das sensações que permite a plenitude, ou, dizendo de outra forma, tudo está ligado pelo fio dos sentidos: a selecta e requintada refeição como prelúdio para o amor e este, na medida em que nele sempre comemos e somos comidos, reenvia de novo, inevitavelmente, para o prazer de boca que o antecedeu e anunciou.
Detesto conselhos e tiradas morais e sempre peço aos amigos que me açoitem quando em tal pecado incorro. Atrevo-me, porém, a declarar que se temos que sofrer de alguma coisa antes seja de licenciosidade que de acrasia. É bem mais divertido viver o desejo sem conflito do que fugir do que sabemos ser bom. Culpa dos demónios interiores em ambos os casos, já sabemos. Mas isso prova ou não que Deus, a existir, anda um bocado distraído? Como pode querer o entendimento e a harmonia entre os seres que criou se convoca demónios tão contraditórios para nos montarem guarda?!
Deixemos de lado frágeis filosofias, as únicas que cabem nestas curtas linhas, e centremo-nos no que motivou este texto: a mudança de estação, as sensações visuais e tácteis que provoca e as memórias que a nostalgia outonal sempre trás consigo. O que importa agora é sublinhar esse percurso que vai da mão à boca, procurando potenciá-lo como caminho de sedução. Acto de amor que apela à metamorfose do desejo, confundido a boca que beija com aquela que devora. Tão voraz uma quanto a outra, por obra dessa infinita magia que se chama prazer.
E para que não fique tudo na palavra inconsequente, deixo uma sugestão aos amantes. Digamos que gostaria que fosse um modesto contributo para um amor feliz. Sugestão pensada para um começo; para aquela altura em que ainda nada aconteceu mas tudo está prometido. Aquele momento cada vez mais frequente em que o apaixonado decide surpreender a amada com uma refeição confeccionada por si.




Creme de chalotas com redução de Malvasia.

Corta as chalotas (250 gr. devem chegar) em quartos e leva a alourar por breves instantes em manteiga clarificada. Refresca com um cálice de vinho da Madeira de casta Malvasia. Quando as chalotas tiverem absorvido o vinho quase todo cobre-as completamente com igual quantidade de Madeira e de um bom tinto maduro. Deixa cozer em lume estupidamente brando durante uma hora e meia a duas horas. Tens que ter o cuidado de ir vigiando e acrescentado vinho, sempre em igual quantidade de maduro e Madeira. Cerca de 15 minutos antes do final da operação deves temperar com flor de sal. Passadas as duas horas de cozedura as chalotas estarão transformadas num puré avermelhado o oloroso e nessa altura deves tirar do lume, juntar cerca de 50 gr. de uma boa manteiga (recomendo à la baratte, mas se não houver serve uma boa manteiga açoriana) e mexer bem com as varas de modo a incorporar algum ar à coisa. Finalmente o último toque: uma pitada de pimenta verde moída na altura.
Tratando-se da situação enunciada – procura da vez inaugural – recomendo que o preparado seja acompanhado de um bife do lombo (ou do lombelo, caso tenhas boas relações no talho lá da rua e este te arranje esta magnífica peça absolutamente esquecida pelos nossos supermercados). Nada de acólitos pesados no prato: dispensa a tentação da batata frita e prepara uma salada de rúcula selvagem. Afinal o objectivo é aquecer a dama e não empanturrá-la! Escusado dizer que acompanha com um bom tinto maduro. Se fores rapaz de poucas posses aconselho-te um Palmela (Dona Ermelinda, por exemplo), talvez a região onde se encontra melhor relação qualidade/preço. Se estiveres medianamente abonado podes escolher melhor. Olha, por exemplo um bairradino, o Diga? - se outra razão não houver pelo curioso nome, capaz de suscitar libidinosos jogos de palavras. Agora, se fores gajo de nota preta e a amada merecer a pena, então faz uma loucura: vê se consegues ainda encontrar o último Barca Velha! Ah, e se a coisa resultar vê se te lembras da ajuda e manda-me lá uma garrafita!
As entradas deixo ao teu critério (afinal ninguém me paga para isto…), mas não dispenses uma mousse de chocolate no final. Fantástico final para um grande começo! Abençoado Toulouse Lautrec, que sendo um grande pintor e um emérito putanheiro, ainda encontrou tempo para inventar esta bênção do palato. A que tu preparares que seja leve (substitui as gemas por umas colheres de natas); servida em pequena quantidade e que deixe na boca dela - que já anseia pela tua - um travo ligeiramente amargo (usa chocolate negro e, se necessário, “reforça-o” adicionando-lhe cacau).
Boa sorte e que os deuses gastrónomos te protejam!

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Remington




Christian Coigny


Com a solenidade que há muito encenara escreveu as derradeiras letras: «FIM». Finalmente aquelas letras, conjugação de astros no horóscopo prometido. Colocou ambas as mãos na pilha de papel dedilhado a máquina de escrever e evocou aqueles longos meses de penoso trabalho. Lançou a baforada cinzenta que retivera nos pulmões sobre as teclas marmóreas e ficou a ver como o fumo as envolvia. Adorava cenários íntimos e decadentes. A virtude do ícone na era da informática! Que outra razão para insistir em escrever numa velha, velhíssima, Remington? Queria para si uma imagem tão forte como aquele aço temperado - Remington misturando-se com o seu nome, a máquina como extensão do corpo, os dedos precisos acariciando as teclas com ternura de amante.
Viver num cenário! Fascinava-o a ideia, vendo nela um vislumbre de perfeição. Bem sabia que o cenário é apenas a parte que deixamos ver e queremos mostrar, caminho indispensável contornando a verdade. Era cenário a batida compassada das teclas e a imperfeição das letras pela usura do chumbo após tantos anos de uso. Por exemplo, a cabecinha do a como testa partida ao meio, ou o x que parecia querer imitar o y. Imperfeições que eram sinais, manchas de sublime humanidade na obra que acabara de escrever. «Breves imperfeições para realçar um sublime amor». Anotou-o a frase no canto de uma página. Não se esqueceria de a usar quando chegassem as entrevistas que lhe dariam o merecido reconhecimento.
Caminhou até ao quarto pensando no sucesso e no modo como iria lidar com ele. Nada que o preocupasse verdadeiramente. Aquela escrita sofrida não o impedira de se preparar para o êxito. Antecipava mesmo a amargura que o sucesso transporta consigo. Tudo escrito nas estrelas com esse mesmo chumbo, cansando mas indelével, dos caracteres imperfeitos: fortuna e perda, sorte e azar, fita bicolor correndo na velha Remington, continuamente batida até que a tinta se esgote. Que outra coisa pode contar mais que a oscilação do eterno pêndulo? Que virtude acima da capacidade de descrever o encanto que nos arrebata e a tragédia que nos destrói? A tinta espirrada no papel, alinhando palavras letra a letra, até ao momento em que a magia se suspende e o chumbo bate no papel sem o imprimir. Também aí corpo e máquina como um só. A dor dos momentos vazios em que também ele ficava em branco, exactamente como o papel correndo na pesada Remington sem fita. Era nessas ocasiões, nesse mergulho no imenso deserto branco, que mais precisava dela. Da sua voz e do seu olhar. Palavra e gesto numa harmonia que o tranquilizava quando lhe dizia: «As palavras vão continuar a crescer. Não te inquietes. Por vezes há momentos em que tudo morre para logo renascer mais forte». Só mesmo ela poderia dizer algo que se ajustava de forma tão perfeita ao seu impúdico desejo de querer ser outro a cada dia. Morte e renascimento, ciclo perpétuo de mil vidas atravessadas numa só, articuladas todas elas pelo ritmo das palavras que flúem e se retraem.
Deitou-se ao lado da mulher com vontade de a abanar ternamente para lhe contar que finalmente acabara. Que a fiel Remington escrevera as derradeiras letras e que aquele «FIM» batido com raiva era um compromisso de mudança. Dizer-lhe que ele próprio se esgotara e sabia que a esgotara a ela, mas que agora, fim de ciclo, tudo recomeçaria. Morte e renascimento. Quis acordá-la e falar-lhe de tudo isto, mostrar-lhe como o horizonte se desanuviara e enchera de promessas. Tocou-a levemente, quase a medo, e achou-a fria, distante, quase sopro gélido saindo daquele corpo em profundo repouso. Corpo exaurido, gasto, consumido no desvairado processo de traduzir na palavra o louco amor que os unia. Fora isso mesmo que ele fizera: em cada tecla batida na velha máquina, em cada palavra composta, um pedaço daquele amor. Súplicas, desejos, esperanças, mesmo os beijos que ficaram suspensos entre os lábios e o papel. Aquele amontoado de folhas dactilografadas era a sua obra e a alma dela.
Sempre soube o risco que corria, mas haverá outra forma de mostrar o amor a quem nunca o viveu? O amor feito palavra, não o retrato falado de um amor. Uma essência arrancada gota a gota do mais profundo esconderijo do amante para deleite e instrução dos demais. Párias, desapaixonados, infiéis, futuros amantes… tanta gente esperando a sua obra! Ali estava ela – e o homem, de novo de pé, punha a sua mão cansada sobre as folhas como se avaliasse o resultado do empreendimento. «O mistério da transmutação», sussurrou repetidamente. O corpo e a alma de tal forma vertidos para o papel que bastaria amassá-lo para dele escorrerem mel e lágrimas. Beleza e sofrimento, criação e morte.
Este foi o momento preciso e irrepetível em que o homem percebeu a perda. Tocou no ombro da mulher e não sentiu nem o calor que desejava nem o frio que temia. Apenas uma moleza sem vida, invólucro vazio testemunhando a perfeição da sua obra. Tinham sido os seus dedos a transformar aquela vida em palavras ditadas febrilmente à velha Remington. Gota a gota, quase sem dor, conseguira aprisionar na escrita toda a alma dela. Não o sangue mas a alma - invisível, sem substância, pingando a cada batida das teclas, com ela se esvaindo o amor mas apenas para renascer num lugar sem tempo, finalmente eternizado em palavras vivas.
O homem retirou a mão do ombro da mulher e colou-se a ela. Sentia agora um frio tão intenso como se abraçasse uma estátua de gelo. «O mistério da transmutação», repetiu. «Ao mistério da transmutação esta morte por expiar». Uma coisa valendo a outra. À honra o castigo; ao assombro de quem lê a dor de quem escreve. Deixando a mulher, o homem voltou à máquina de escrever. Acertou o papel branco no cilindro e estalou os dedos. Um prefácio! Sim, um bom prefácio poderia redimi-lo. Sorriu ao escrever. Sabia que bastaria uma parte da sua alma vertida no papel para apaziguar a justa censura das almas alheias.


Gian Lorenzo Bernini