segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Maravilhas do mundo animal: o orgasmo feminino

Gustav Klimt


É um daqueles fantásticos mistérios que transcendem a simplicidade da alma masculina. Pelo menos da minha, e por isso vos peço, eventuais leitores, que me ajudem nesta demanda. De onde vem aquela energia toda que tanto faz estremecer a mais santa como a mais puta das mulheres? Bom, vendo bem, desta questão particular nem há muito a dizer. É um daqueles mistérios que pode muito bem continuar misterioso – ainda que seja pena não se encontrar maneira de usar tamanha energia para esbater a actual crise dos combustíveis.
Há outras questões, porém, que merecem reflexão. A do tempo, por exemplo. Porque haverá mulheres que parecem tropeçar no orgasmo e outras nunca encontram o caminho? Porque existirão tantas variações - de ordem quantitativa e qualitativa - entre os sinais que o anunciam e a sua plena manifestação? Porque são tão variáveis (e às vezes imprevisíveis…) os efeitos secundários do orgasmo - riso nervoso ou destrambelhado, choro tímido ou convulso, fome súbita ou perda de apetite? Tantas perguntas, tão poucas respostas!
Mas no fundo talvez tudo isto sejam coisas lá com elas e o melhor que temos a fazer é concentrarmo-nos naquilo que é de gajo! Ou seja, coisas práticas. O que devemos nós fazer naquele entretanto que vai do anúncio à magnifica explosão? Já se sabe que devemos aguentar a “pé” firme para que a simultaneidade exponencie os efeitos da combustão interna. Ora, o que sucede é que isso nem sempre é fácil. Há truques, bem sei, mas quantas vezes não resultam deles mal-entendidos?! Eu, numa ocasião, decidi bater palmas. Pareceu-me adequado: marcava o ritmo e servia como estímulo, assim à maneira de uma claque. Agora vejam, tratando-se de mulheres, pode um gajo ter boas intenções? Quase nunca! Pois é, já adivinharam: a bela não achou graça e deu-me dois formidáveis murros no plexo solar. A falta de ar foi o de menos. Pior foi a súbito minguamento do que estava em ponto de rebuçado, mas, valha a verdade, esse desagradável efeito secundário também a ela custou!
Dir-me-ão que de tais acidentes sempre resultam valiosas lições. Não estejam, porém, tão seguros, pois tratando-se de mulheres nunca se sabe. Querem provas? Então aí vai. Em ocasião posterior, e como a coisa tardasse mais que o desejado, dei por mim trauteando o hino da Maria da Fonte. Um pouco a medo no começo, é certo, mas a verdade é que quando cheguei aquela parte que diz «… com as pistolas na mão / para matar os Cabrais / que são falsos à Nação», nem vos conto! A dama ficou mais tola do que era costume e tudo acabou numa pura explosão de pirotecnia chinesa que nem na abertura dos Jogos Olímpicos!
É o que digo: um mistério dos grandes! Mas quem não gosta de um bom mistério? Eu gosto, e gosto tanto deste que procurei até documentar-me. Como as mulheres me acham um tanto destravado e pouco de fiar, raras vezes entram em minúcias comigo, mas vejam as confissões de umas destas fascinantes criaturas do mundo natural:

Preparo-me para os orgasmos como se me preparasse para cozer pão. Primeiro, limpo o mármore. Depois, tiro minuciosamente todos os utensílios que vou utilizar. O meu corpo é a massa. Trabalho-o com as mãos como se fosse pasta. Atiro-o ao ar e espero que caia nos meus braços como um amante. Recorro à analogia dos fogos artificiais para descrever os meus orgasmos, porque cada um é diferente e uma vez começado, nunca posso prever o resultado. Alguns começam com um grande estalido, mas desvanecem-se. E outros começam como pólvora molhada, mas de repente, no alto do céu, precisamente quando julgas que se perderam, rebentam no chapéu de chuva mais brilhante. Frequentemente os orgasmos jogam às escondidas, como as chaves que oiço, mas não consigo encontrar, no fundo do bolso. Quando me custa chegar ao orgasmo, parece-me estar numa auto-estrada metido num grande engarrafamento de trânsito. Sinto-me sempre ávida depois de um orgasmo, talvez porque nunca me supera totalmente (…) antes de chegar à meia-idade, senti um interesse estético pelos orgasmos. Às vezes planeio os meus orgasmos como se fossem uma competição atlética. O meu orgasmo final é sempre como um reflexão a posteriori, porque nunca sei quando retirar-me. Penso que a frase”deverias saber quando retirar-te” foi inventada por alguém que sabia exactamente em que orgasmo parar. Penso que nalgum lugar do mundo deve existir um quarto escuro com um letreiro na porta que diz: “Orgasmos perdidos”, onde estão todos os orgasmos que deveria ter tido.
Daphne Slade, La forma de la sensación.

Como se fosse cozer pão? Alguns começam com um estalido? Como se fossem uma competição atlética? Nada disto vos parece estranho? Falo convosco, eventuais gajos que por aqui passem, já que ao mulherio tudo isto deve ser a coisa mais natural do mundo! E que dizer da ideia que alguns orgasmos são como pólvora molhada? Humidade convém que haja, mas pólvora parece-me doidice. Enfim, coisa de gaja e do maravilhoso mundo animal. O que importa saber é se há por aí alguém capaz de ajudar. Please?

sábado, 20 de setembro de 2008

Rock Hotel

Egon Schiele


O teu corpo desenhado no lençol por sopros de luz. Centelhas dóceis, rendidas à perfeição da forma, entravam pelas frestas da persiana corrida e eram línguas de fogo viajando a uma velocidade tão assombrosa como a tua beleza. Trezentos mil quilómetros por segundo, uma tão espantosa velocidade que apagava todo o espaço. Tu e a luz negando o vazio, aliados improváveis mas irrepreensíveis. Seria por isso que enchias o quarto e o meu espanto. Posso jurar que não precisava olhar para te ver. Estavas em toda a parte. No espelho que nos reflectiu enquanto nos amávamos, na almofada a que dormiste abraçada e que agora jazia a meus pés, até mesmo na cadeira em que me sentava, sobreposta a mim, parte maior de mim. Estavas também na janela ainda fechada, transbordavas para fora do quarto, para a cidade sempre agitada que nem sequer imaginava que nós dois existíamos e nos amávamos naquele quarto de hotel a que já nos tínhamos habituado. Gosto de olhar-te assim pela manhã. Acompanhar os primeiros raios de sol assomando nas frinchas mais altas da persiana. Como são lentos esses farrapos de luz. Tantos quilómetros por segundo e tanta lentidão. Estou certo de que a luz admira o teu corpo tanto quanto eu o admiro e é por isso que nega a sua natureza e se torna lenta, percorrendo com mansidão cada centímetro da tua pele. Tantos mil quilómetros por segundo e a luz parando ali como se não houvesse tempo. E também eu fico preso na mesma teia, cúmplice do sol matinal, enredado na teia que ele estende como um véu que a pouco e pouco te vai cobrindo. A quantos quilómetros por segundo chega o orgasmo? Não falo do seu anúncio, que esse manifesta-se em sinais claros e que aprendi a ler. Aprendi o significado de cada contracção do teu rosto, do caminho que as tuas mãos percorrem, quando abandonam o meu corpo e se concentram no teu. Indícios tão claros como os alvores rosáceos pressagiando um dia de calor. Pressinto o teu orgasmo antes que tu o traduzas em palavras ou em gemidos. Talvez de tanto te amar o pressinta mesmo antes de ti. Mas do que falo não é desse caminho que o orgasmo faz das entranhas para a alma. Do modo como vem desde um lugar fundo, de um subterrâneo aberto desde a raiz do próprio tempo, deste nosso tempo de homens que a luz atravessa a trezentos mil quilómetros por segundo. Falo de outra coisa. Falo da velocidade com que ele te abala o corpo, de como te percorre toda inteira: inteiriça como um animal mergulhado no prazer e no vício. Bem sei que ele dura depois nas suas consequências, se prolonga em espasmos e convulsões, deliciosos efeitos secundários. Mas ou não há um momento preciso, exacto, condensado numa tensão de um nanosegundo? Espécie de flash viajando a quinhentos mil quilómetros por segundo, negando na sua exuberância as próprias leis da física. Falei-te nisso e tu riste como só tu sabes rir. E eu ri-me contigo, e rebolamos juntos na cama desfeita, os lençóis enrodilhados deixando ver o colchão azul, enorme e quadrado que não conhecia norte nem sul. Colchão-arena, tapete voador dos amantes, corpo-delito a que sempre voltávamos com a complacência do gerente. Hotel Dublin, local de eternas núpcias, achava eu antes mesmo de te perder para outros abraços.






A última vez que entrelaçamos os dedos. A derradeira carícia que se imprimiu em mim de forma tão profunda que ainda hoje sinto, dedo a dedo, a tua mão entre as minhas. Fiz batota, acho que fiz batota. Só eu sabia que aquela seria a despedida e pude, por isso, guardar para mim o teu calor. Que sentirás tu hoje, tantos anos passados? Serei na tua memória um esquecimento? Não sei sequer se o teu ódio por mim foi uma ferida purulenta ou uma mazela sem importância. Sobreviverei em ti como uma cicatriz? As vezes que voltei ao Hotel Dublin carregando comigo estas folhas em que escrevo como se te levasse comigo, como se tivesse sido possível ter-te transformado em palavras. O amor está na cabeça e nas palavras que dizemos. Se isto fosse uma carta, se acaso o pudesse ser, perguntar-te-ia se ainda te lembras de como acreditávamos nesta ideia tão simples e de como buscávamos palavras novas e nos enternecíamos e surpreendíamos nelas. Era um jogo, bem sei, mas não percebi que o devíamos ter guardado só para nós. Ah, a minha alma de artista apenas se alimenta do universal! Como podia eu sufocar de amor e deixar-te sufocar a ti se o mundo inteiro me esperava e te esperava. E todavia, quanto eu não daria para te ver interpretar uma peça minha. Esse prazer simples das minhas palavras na tua boca. As minhas palavras misturadas com a tua saliva, formando-se no profundo erotismo de lábios, língua e dentes movendo-se na tua boca. Teria bastado mas quem o podia saber naqueles vagos anos de entusiasmo e presunção. E depois surgiu ele. Mentira: sempre esteve ali, na sombra, esperando o momento. Janus, face luminosa de amizade disponível escondendo a outra, a paciente face do caçador que espera a fragilidade da vítima para sobre ela se abater. Estou a ser injusto? Descobriste nele qual das faces? Pode ele iluminar-te como eu te iluminei? Antes te sufocou de tal forma que nem esse sufoco imenso percebes. E no entanto devias percebê-lo. Logo tu, a mais certeira das apostas do Rock! Sobraram uns quantos cartazes desbotando entristecidos no seu gabinete-quarto-sala de exposições-antro de visitas-caverna de assombrações e de fantasmas. «Rock Hotel! Fantasmotel! Não perca, entre no Rock e sufoque!».