quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Antes asno que me carregue...

Robert Mapplethorpe



Uma muito querida amiga, reflectindo sobre as agruras de infidelidade, sublinhava há uns dias a inconveniência dos amores com pessoas demasiado interessantes. Inteligente como é (note-se que, por definição, todas as minhas amigas primam pela inteligência), achou por bem caracterizar a situação a partir de um locus masculino. Um homem que ande com uma mulher muito bonita, dizia ela, tem sempre o problema de saber que inúmeros outros homens a desejam e se esse conhecimento não gera insegurança ou incerteza, alimenta, pelo menos, o receio de a perder. Julgo que não estou a desvirtuar o seu pensamento se disser que o «bonito» pode aqui ser estendido a outros atributos como o charme ou a inteligência. De qualquer forma, independentemente do factor distintivo ser a inteligência ou a beleza física, o argumento não podia ser mais claro. Ainda que sem certezas definitivas sobre a resposta ao dilema, a minha amiga ponderava se não seria preferível uma relação com alguém medianamente interessante e fiável do que com alguém verdadeiramente interessante mas mais susceptível às tentações. Cá para mim, bonitos ou feios, inteligentes ou broncos, ninguém é de ferro. Ou seja, a fiabilidade é uma variável independente, pelo que a argumentação me parece ter um efeito mais retórico que clarificador.
Foi por isso, e também porque gosto de imagens fortes, que lhe disse logo na cara: «O que tu me estás a dizer é que preferes asno que te carregue a cavalo que te derrube». Na verdade não era bem isso. Ela não queria um burro-burro nem tampouco um feio-feio, como rapidamente percebi pela sua manifestação de desagrado. É claro que eu, atreito como ando a mal-entendidos, me apressei a contemporizar. Declarei de mão no peito que nada me move contra os simpáticos asininos e menos ainda contra os feios. Depois, convencido que um pouco de erudição fica bem em qualquer conversa, evoquei Boris Vian, escritor que muito me agrada, para assegurar que jamais me passaria pela cabeça fazer do título do seu conhecido policial, Morte Aos Feios, um slogan evocativo e menos ainda um princípio de vida. Como isso não chegou para a tranquilizar, procurei mostrar-lhe que a beleza vale bem pouco e que a culpa desse baixo valor não tem sequer a ver com o sossego que nos é roubado quando o nosso par é demasiado interessante. A beleza, quando muito, alimenta o ego mas deixa o corpo à míngua, ou seja, como diria o nosso inestimável povo, «cantoria sem comedoria é gaita que não assobia». Portanto, teima de cigarra que não aprende com velhas fábulas. Percebendo no seu olhar a sombra evidente do cepticismo, fiz-lhe ver que muita e diversa gente percebera esta verdade na pele. Lembras-te do inspirado Allen Ginsberg e da pergunta que formulou no doutrinário poema América: «Quando poderei eu entrar no supermercado e comprar tudo o que preciso com a minha beleza?». Ela lembrava-se e desconfia, tal como eu, que também neste caso a beleza de nada valeu: por certo o ilustre poeta morreu sem se livrar de pagar as contas da mercearia.
Bem sei que com esta conversa me desvio do ponto essencial da conversa e da inquietação da minha amiga. O ponto fundamental é o do equilíbrio entre razão e paixão. Ela bem o sabe e por muito que queira ser possuída pela razão, há sempre um pedacinho irredutível dela mesma que lhe prega uma rasteira e a atira para os braços da paixão. É por isso que evocar um «ponto de equilíbrio» é só uma forma de falar. Digamos que é uma espécie de aspiração apaziguadora ou uma promessa de serenidade. Poder-se-á dizer que um compromisso entre o burro e o cavalo? Hummm... talvez não, posto que os hibridismos funcionam mal neste delicado campo dos afectos. A não ser que a proposta de compromisso se manifeste numa alimária mitológica: o unicórnio! Belo animal, sem dúvida - além de sugestivamente fálico!
Por tudo isto, em verdade te digo: façamos sem hesitação o caminho que nos apetece. Quanto aos trilhos que ficaram para trás, para esses nem vale a pena olhar, pois que de estátuas de sal já todos temos a nossa conta. Dizendo o mesmo de outra forma: burro, alazão ou unicórnio, que se funda montada e montador e assim, nesses preparos, que ambos percorram caminhos capazes de os encantar.

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