segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Amor-humor

Martin Van Maele



Abençoado modernismo brasileiro, que não só nos deu a conhecer o impagável Macunaíma e nos deslumbrou com as telas de Tarsila do Amaral como nos legou também a fantástica sabedoria do amor contida no célebre poema de Oswald de Andrade:


Amor
Humor



Não sei se a literatura em língua portuguesa tem algum poema mais curto que este mas estou certo de que poucos se lhe igualam em assertividade e inspiração.
Prova provada de que, pelo menos neste campo, o tamanho não é realmente importante, o poema de Oswald contém todo um projecto de vida e uma inspiração de consumação existencial: fazer sorrir o nosso par! Claro que não é apenas isso, pois o amor não é uma comédia de costumes. Pode até dizer-se que o mais decisivo se encontra noutro lugar do poema - sim, eu sei que é estranho, mas mesmo num poema tão pequenino podemos encontrar recantos escondidos! Falo da dessacralização do amor, dessa arremetida contra a certeza da dor que parece prefigurar cada relação. Amar é sofrer de amor. Sofremos pela dúvida, mas se não a tivermos sofremos pela convicção de que a certeza não pode durar sempre. Podemos também sofrer pela violência da paixão muito embora não deixemos de sofrer quando essa mesma paixão nos ignora e nos passa ao lado. Afinal, talvez o sofrimento seja um alimento indispensável para a alma mas se assim é que o riso seja o digestivo para tão pesado alimento! Amor/Humor? Sem dúvida que sim! Antes isso que um rebuscado lirismo, daqueles que sempre dão mau resultado!
É mentira o que digo? Consideremos então o que diz o vate:

Amor é fogo que arde sem se ver
(Diacho, bem sabemos que o homem tinha só um olho operacional, mas ainda assim parece-me incrível que não tenha visto o que queima o olhar! «Fogo que arde sem se ver»?! Como pode alguém que amou de verdade não ter visto a sua amada em chama viva? Confesso que não entendo, mas a burrice será realmente minha?).

É ferida que dói e não se sente
(Ai não que não se sente! Gajo insensível, heim! Deve ser por estas e por outras que se criou essa ideia peregrina de que o homem apenas sente e pensa pela pila! O caraças: a gente sente e vê a ferida, mexemos até nela e como por vezes temos ainda os dedos sujos com as cinzas dos amores que nos feriram acabamos por agravar dor e ferida...).

É um contentamento descontente
(Com esta é que eu me passo de vez! «Contentamento descontente»? É este o ponto; é este o mal! Tal a demência de quem assim ama que já nem a alegria sente como alegria. Contentamento descontente não é bem ficar trombudo depois do acto, mas no mínimo é ficar seráfico e virar costas ao diabinho que nos puxa o sorriso alvar de quem se lambuzou todo de chocolate e menta e está com vontade de voltar ao pote!).

É dor que desatina sem doer
(Quem desatinaria seria eu se acaso continuasse com este exercício de olhar o poeta no seu desvario! Melhor ficar por aqui, até porque para ilustração já basta assim!).

Martin Van Maele

Num conhecido ensaio, Henri Bergson defende que "o riso não tem inimigo maior do que a emoção". Para ele, "numa sociedade de inteligências puras provavelmente deixaríamos de chorar, mas talvez continuassemos a rir; ao passo que um mundo de almas invariavelmente sensíveis, afinadas em uníssono pela vida, onde todo e qualquer acontecimento se prolongasse numa ressonância sentimental, não conheceria nem compreenderia o riso".
Se Bergson o diz quem sou eu para desdizer? Mas que sucede quando amor se conjuga com humor, como no brilhante achado de Oswald de Andrade?



Amor

Humor


Casamento espúrio, acham mesmo que é? Eu não acho. Para além de rimarem, amor e humor têm em comum o facto de só poderem ser feitos acompanhados. É claro que podemos ter prazer sozinhos e rir sem que ninguém nos acompanhe, mas mesmo nesses casos há uma dimensão evocativa que implica um outro. E depois há ainda o valor facial das palavras, a sua história e espessura. Todos nós sabemos (pelo menos assim espero...) como o amor carnal, esse tesão que nos devora e consome, se transmuta em humidade - seja ela suor, saliva ou tudo o mais. Ora bem, é ou não verdade que essa humidade tem a sua raiz em húmus, que não é senão a matriz latina da palavra humor?! E atrever-se-á alguém a declarar que o amor, na sua expressão vibrante de sexo consolador e festivo, não melhora o nosso estado de alma? Não há como negar: alegria e bom humor têm uma relação umbilical com o prazer e este, mesmo recusando tomar a parte pelo todo, tem no sexo um importante pilar.

Mas tem ainda uma outra dimensão nesse feliz casamento entre amor e humor. Já o referi e com ele finalizo: a possibilidade de dessacralizar o afecto sem que a paixão se perca. Sempre temos um problema quando falamos de amor: há um excesso de sentido para um vocabulário demasiado limitado. O amor pode ser muitas e variadas coisas e as palavras de que dispomos para o caracterizar são claramente insuficientes. Ainda que esteja longe de ser a única razão, é também por isto que os desacertos afectivos são tão inevitáveis. São esses desacertos, sejam eles pontuais ou estruturais, que fazem a nossa história afectiva e essa história, que constantemente reescrevemos, soa sempre melhor quando nos servimos do humor para a colorir. Dói menos assim e, se querem mesmo saber, eu até acho que fica mais verdadeira quando a contamos de modo a que dela possamos sorrir. Ou rir a bandeiras despregadas... depende dos casos e dos acasos.




Martin Van Maele

4 comentários:

Marcos do Hawaii disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcos do Hawaii disse...

Hey ...
Legal o seu texto ...
Oswald é genial ....
Com duas palavras explicou algo que não se explica com mil ...
Captou tudo ...e sintetizou em duas palavras

Anónimo disse...

quanta baboseira disseste sobre os versos de Camões!

Anónimo disse...

Para mim vocês viajaram legal