
Desde que Ulisses a si próprio se baptizou «Ninguém», dessa forma iludindo Polifemo e os demais ciclopes, que as palavras parecem condenadas a ter tanto de engano quanto de virtude. A desgraça do pobre Polifemo, com o único olho vazado por um barrote, exclamando que fora Ninguém quem lhe fizera mal, foi a sorte de Ulisses e dos companheiros, que dessa forma escaparam ao monstro voraz que os guardava para uma próxima refeição.
Não vivemos senão na palavra e pela palavra e não apenas porque é através dela que comunicamos. Há algo mais na nossa relação com elas: são as palavras que nos dão o entendimento do mundo em que vivemos. Quem somos e o que somos, o que são os outros para nós, que mundo é este que nos cerca e que sentido lhe damos, que sonhos podemos ter e quais os desejos que nos estão vedados. Tudo isto e mais ainda está contido no universo da palavra. Sem que disso tenhamos clara consciência, as palavras nascem e extinguem-se, adquirem novos sentidos e conotações, aplicam-se a objectos imprevistos e definem novos campos de significação. Estas mudanças podemos até senti-las e percebe-las mas o que quase sempre acontece é que vemos nelas apenas a dinâmica da comunicação e não o processo de construção do mundo.
Isto que digo é fácil de perceber olhando o modo como certos conceitos migram de umas para outras áreas e as colonizam. Veja-se como o vocabulário militar, estruturado em torno do conceito de estratégia, se tornou decisivo no discurso político e económico, ou seja, nos lugares simbólicos (e práticos) de explicação e justificação do mundo. Basta folhear um livro de gestão de empresas ou estar atento ao discurso político que todos os dias nos entra casa dentro, para perceber o argumento. Esta colonização do vocabulário militar ensina-nos o valor da táctica para vencer nesse campo de batalha, que é, afinal, o nosso enorme mundo, que devemos ver fragmentado entre aliados e adversários.
Nem sempre, porém, esta migração de conceitos deve ser vista sob este prisma um tanto ou quanto maniqueísta. Em alguns casos essa migração é simplesmente ridícula. Juro que já ouvi um relator de um desafio de futebol dizer que se “abriu uma janela de oportunidade” ao ponta-de-lança e que foi assim que ele fez golo! A moda, que torna certas palavras vibrantes e indispensáveis em certos momentos e as remete ao esquecimento noutras ocasiões, faz também parte da estranha vida das palavras. A moda e uma valorização simbólica profundamente contingente, que tanto pode favorecer a mais singela das simplificações como apelar ao mais retumbante dos excessos prosódicos.
Esta dupla face da palavra remete para uma dimensão propriamente mágica. Não brinco: é mesmo mágica! Um sim ou um não podem modificar tudo na vida de uma pessoa. Pode um sim significar a vida e um não a morte. Ou vice-versa, o que vai dar ao mesmo. Assim foi com Giordano Bruno e com Galileu - e mesmo que séculos mais tarde o poeta tenho vindo proclamar “Tu é que sabias, Galileo Galilei...”, a verdade é que raras vezes há certezas nessa contracção tão absoluta de uma decisão. Ao contrário, quase sempre o que mais conta é o imenso universo de cor e ambiguidade que existe entre um sim e um não. É nesse sentido que falo de magia: «Diga as palavras mágicas e a sua vida mudará para sempre!». «Sim, eu abjuro o que disse antes; no que acreditei desacredito agora!» Assim se salvou Galileu e nem por isso a terra deixou de girar teimosamente em torno do sol.
Pela parte que me toca, sempre suportei mal esse peso avassalador das palavras singelas. Medo que me enfeiticem, deve ser isso. Vejo-as como um ponto falsamente destacado, um vórtice que tudo engole, espécie de aleph borgesiano que ilude quem espreita pela frincha que o revela. Será por isso que nunca cheguei a dizer o sacrosanto «sim» matrimonial? Claro que podia fazer como um amigo meu, artista plástico com mais prosápia que talento, que achou por bem substituir o sobrevalorizado «sim» por um mais sonoro «pois claro». O padre bem insistia «Deve dizer sim, aceito» e ele, teimoso, «pois claro que aceito». Daquilo não se saiu e teve o padre que dar-se por satisfeito com aquela deturpação do cânone. Mas deve ter-lhe rogado uma praga, pois meses depois estava o jovem casalinho condenado por posse e tráfico de estupefacientes. Moral da história? Não tem, é uma história imoral mas confesso que sempre gostei delas assim.
Parece-me que me desviei um pouco do que me propusera inicialmente. E daí nem tanto. Não é só pelo modo como as palavras se transformam pelo uso que lhes damos que a sua vida é estranha. Ela é-o também pela forma como decidem a nossa vida. Pelo modo como nos comprometem e nos enganam. George Steiner, num ensaio recente, pergunta-se como amará um surdo-mudo. Como amará alguém que não foi tocado por essa magia da palavra dita e escutada? Talvez a pergunta seja irrelevante e também o silêncio, essa ausência de expressão mas não de sentimento, faça, afinal, parte desse estranho mundo das palavras a que prometo voltar.
Não vivemos senão na palavra e pela palavra e não apenas porque é através dela que comunicamos. Há algo mais na nossa relação com elas: são as palavras que nos dão o entendimento do mundo em que vivemos. Quem somos e o que somos, o que são os outros para nós, que mundo é este que nos cerca e que sentido lhe damos, que sonhos podemos ter e quais os desejos que nos estão vedados. Tudo isto e mais ainda está contido no universo da palavra. Sem que disso tenhamos clara consciência, as palavras nascem e extinguem-se, adquirem novos sentidos e conotações, aplicam-se a objectos imprevistos e definem novos campos de significação. Estas mudanças podemos até senti-las e percebe-las mas o que quase sempre acontece é que vemos nelas apenas a dinâmica da comunicação e não o processo de construção do mundo.
Isto que digo é fácil de perceber olhando o modo como certos conceitos migram de umas para outras áreas e as colonizam. Veja-se como o vocabulário militar, estruturado em torno do conceito de estratégia, se tornou decisivo no discurso político e económico, ou seja, nos lugares simbólicos (e práticos) de explicação e justificação do mundo. Basta folhear um livro de gestão de empresas ou estar atento ao discurso político que todos os dias nos entra casa dentro, para perceber o argumento. Esta colonização do vocabulário militar ensina-nos o valor da táctica para vencer nesse campo de batalha, que é, afinal, o nosso enorme mundo, que devemos ver fragmentado entre aliados e adversários.
Nem sempre, porém, esta migração de conceitos deve ser vista sob este prisma um tanto ou quanto maniqueísta. Em alguns casos essa migração é simplesmente ridícula. Juro que já ouvi um relator de um desafio de futebol dizer que se “abriu uma janela de oportunidade” ao ponta-de-lança e que foi assim que ele fez golo! A moda, que torna certas palavras vibrantes e indispensáveis em certos momentos e as remete ao esquecimento noutras ocasiões, faz também parte da estranha vida das palavras. A moda e uma valorização simbólica profundamente contingente, que tanto pode favorecer a mais singela das simplificações como apelar ao mais retumbante dos excessos prosódicos.
Esta dupla face da palavra remete para uma dimensão propriamente mágica. Não brinco: é mesmo mágica! Um sim ou um não podem modificar tudo na vida de uma pessoa. Pode um sim significar a vida e um não a morte. Ou vice-versa, o que vai dar ao mesmo. Assim foi com Giordano Bruno e com Galileu - e mesmo que séculos mais tarde o poeta tenho vindo proclamar “Tu é que sabias, Galileo Galilei...”, a verdade é que raras vezes há certezas nessa contracção tão absoluta de uma decisão. Ao contrário, quase sempre o que mais conta é o imenso universo de cor e ambiguidade que existe entre um sim e um não. É nesse sentido que falo de magia: «Diga as palavras mágicas e a sua vida mudará para sempre!». «Sim, eu abjuro o que disse antes; no que acreditei desacredito agora!» Assim se salvou Galileu e nem por isso a terra deixou de girar teimosamente em torno do sol.
Pela parte que me toca, sempre suportei mal esse peso avassalador das palavras singelas. Medo que me enfeiticem, deve ser isso. Vejo-as como um ponto falsamente destacado, um vórtice que tudo engole, espécie de aleph borgesiano que ilude quem espreita pela frincha que o revela. Será por isso que nunca cheguei a dizer o sacrosanto «sim» matrimonial? Claro que podia fazer como um amigo meu, artista plástico com mais prosápia que talento, que achou por bem substituir o sobrevalorizado «sim» por um mais sonoro «pois claro». O padre bem insistia «Deve dizer sim, aceito» e ele, teimoso, «pois claro que aceito». Daquilo não se saiu e teve o padre que dar-se por satisfeito com aquela deturpação do cânone. Mas deve ter-lhe rogado uma praga, pois meses depois estava o jovem casalinho condenado por posse e tráfico de estupefacientes. Moral da história? Não tem, é uma história imoral mas confesso que sempre gostei delas assim.
Parece-me que me desviei um pouco do que me propusera inicialmente. E daí nem tanto. Não é só pelo modo como as palavras se transformam pelo uso que lhes damos que a sua vida é estranha. Ela é-o também pela forma como decidem a nossa vida. Pelo modo como nos comprometem e nos enganam. George Steiner, num ensaio recente, pergunta-se como amará um surdo-mudo. Como amará alguém que não foi tocado por essa magia da palavra dita e escutada? Talvez a pergunta seja irrelevante e também o silêncio, essa ausência de expressão mas não de sentimento, faça, afinal, parte desse estranho mundo das palavras a que prometo voltar.