quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Despedida de solteiro


Garry Winograndot




Entrou no carro convencido de que aquela era a última vez que o fazia. Não lhe pesava tanto essa certeza como a dúvida acerca dos gestos adequados àquele momento irrepetível. Sentia que cada um deles devia ter um significado especial, como se fosse parte de uma cerimónia ou de um ritual, mas enredava-se inabilmente num refinamento embaraçado e artificial. Logo ele, que sempre tomara tais disposições como artifícios dispensáveis e sempre subordinara a forma ao conteúdo, percebia que naquela ocasião devia vestir a pele de um oficiante e fazer de cada gesto derradeiro um testemunho que lhe sobrevivesse. Momentos antes, quando fora buscar a noiva ao centro comercial suburbano, fora capaz de a surpreender pela desmedida cortesia. Ele próprio surpreendido, para falarmos com inteira verdade. Jamais se vira ou imaginara naquele papel: saíra do carro para lhe abrir a porta, pegara-lhe na mão com inusitada ternura esperando que se sentasse, só depois lhe beijando o nó dos dedos com lábios de veludo. Ali sentados, lado a lado, na intimidade forçada do automóvel, seguiram calados, vendo como o trânsito se adensava na aproximação do centro urbano. Além de surpreendida, ela ficara embaraçada com aquele tratamento inesperado e deu por si imaginando que propósito esconderia. Também ele, homem de contadas e certeiras palavras, se distraiu em vagos pensamentos, conferindo mentalmente se cada um dos gestos de que se servira correspondia adequadamente ao vago mas indispensável modelo de relação romântica ensinada no cinema.
Levou-a a um restaurante absurdamente caro, um daqueles lugares onde a reserva de uma mesa podia levar meses a conseguir. Restaurante da moda, que por não abdicar um milímetro da tradição que lhe dera fama, conciliava na perfeição as fortunas emergentes com aquelas que iam decaindo e das quais apenas sobrava uma certa patine de distinção. Muda, intimidada, a rapariga apenas sorria, sem entender o que fazia ali nem como pudera o seu modesto noivo levá-la àquele lugar. Simples e discreto. Sempre pensara nele desta forma, mesmo que sentisse que havia também um lado profundamente misterioso e inacessível. Demasiadas perguntas sem resposta, demasiados espaços vazios numa vida de que apenas conhecia fragmentos dispersos através de confissões breves e acidentais. Mas ela não temia o silêncio nem os mistérios. Bastava-lhe o sorriso meigo, de menino sem amparo, e a meiguice que tornava irrelevantes quaisquer dúvidas ou inquietações. Também sucedeu assim naquela noite. Como se o sorriso brando fosse suficiente por si só, a única confidência que ela lhe arrancou foi que aquela seria uma noite muito especial para ele. Ela, baixando os olhos num pudor encenado, quis saber se seria especial apenas para ele. O homem olhou à volta e demorou na resposta, parecendo ponderar cada palavra. «Também para ti vai ser uma noite especial», acabou por dizer, mas não a olhou nos olhos nem lhe pegou na mão como ela gostaria.
O homem comia sem vontade, mastigando demoradamente ínfimos pedaços com ar sereno mas distante. Ela viu naquilo uma timidez prudente mas eram outros os sentimentos que o atravessavam. Em vão procurava evitá-los e fazer-se mais presente, mas sempre aquela ideia vã e despropositada se apossava dele e o prendia. Como seria a sua vida se pudesse deixar de fazer aquilo para que estava destinado? Que formas tão diversas podia ter assumido a sua existência se outros tivessem sido os seus compromissos? Quantas vidas ficam por viver em cada decisão que se toma? Era esta a pergunta fundamental, mas nem para ela nem para as demais procurava verdadeiras respostas. Queria apenas livrar-se daquela inquietação que o consumia e que era uma forma de dúvida que não se atrevia a assumir. Indomáveis, os pensamentos voltavam sempre mais fortes e ele observava a noiva com olhos intensos, certo de que tudo seria mais fácil se não a tivesse conhecido… Quando os olhares se cruzavam parecia ainda maior, mais intenso, aquela espécie de desejo contido e sufocado. Ela via os sinais mas não os entendia e chegava até a enternecer-se com aquele sofrimento que lhe parecia pura timidez.
Aquela era a noite em que todos os comprometimentos se iriam tornar claros e irreversíveis. Os compromissos sobrepondo-se a inesperados afectos e paixões que o agarravam e ameaçavam as fundas convicções. Sabia que as escolhas estavam feitas há muito e que os desejos, mesmo os mais profundos, não podiam sequer ser confessados. Sobretudo os mais profundos. Sobrava-lhe aquela esperança inconsequente de no final de tudo se poder reencontrar com o mesmíssimo amor a que agora fugia. Desejo de transcender o tempo e as circunstâncias que determinaram as escolhas definitivas. Rasurar espaço e tempo e regressar a ela como um corpo que emerge das águas frias a que foi arremessado.
Quando o jantar se aproximou do fim, à hora em que no restaurante se multiplicavam vozes e pessoas, a sua tensão e desconforto aumentaram. A mulher não pôde deixar de o notar na indecisão das escassas palavras e no fio de suor que lhe atravessou o rosto. Generosa, inventou entusiasmo e jovialidade, convicta que dessa forma o ajudava a formular o pedido que ansiava ouvir. Logo que acabou a sobremesa ele deixou-a. Demorou tanto tempo nos lavabos que parecia até esperar que ela se cansasse e partisse sozinha. Quando regressou à mesa vinha lívido, parecendo tão cansado que se diria transportar consigo todas as penas do mundo. Pela primeira vez desde que ali tinham entrado pegou-lhe na mão. Fê-lo com a ternura habitual, mas juntou-lhe também doçura tão intensa como ela nunca experimentara. O sorriso da mulher revelava a sua alma: chegara o momento feliz por que tanto esperara. Agora sim, nenhuma dúvida de que ele pusera de lado todas as incertezas e hesitações. Raras são as vezes em que o sorriso de dois amantes se encontra em tamanha sintonia como naquele breve instante. Foi então que o homem levou a mão ao bolso e activou o engenho que trazia preso à cintura. As notícias do funesto acontecimento insistiram num macabro recorde: nunca um atentado terrorista fizera tantas vítimas inocentes naquela infeliz cidade.

1 comentário:

B.F.E. disse...

Querido Luis, ao que me parece Saramago realmente não tinha a simples intenção de questionar o processo garantista, essa humilde estudante de direito é que neste momento se dispos a dissertar a cerca deste assunto que, SIM, é relevante e faz parte da obra.
Quanto a dispensabilidade do Estado, sou obrigada a discordar pois mesmo com muitos defeitos ainda assim "ruim com ele pior sem". Obrigada por comentar o meu blog...