sábado, 20 de setembro de 2008

Rock Hotel

Egon Schiele


O teu corpo desenhado no lençol por sopros de luz. Centelhas dóceis, rendidas à perfeição da forma, entravam pelas frestas da persiana corrida e eram línguas de fogo viajando a uma velocidade tão assombrosa como a tua beleza. Trezentos mil quilómetros por segundo, uma tão espantosa velocidade que apagava todo o espaço. Tu e a luz negando o vazio, aliados improváveis mas irrepreensíveis. Seria por isso que enchias o quarto e o meu espanto. Posso jurar que não precisava olhar para te ver. Estavas em toda a parte. No espelho que nos reflectiu enquanto nos amávamos, na almofada a que dormiste abraçada e que agora jazia a meus pés, até mesmo na cadeira em que me sentava, sobreposta a mim, parte maior de mim. Estavas também na janela ainda fechada, transbordavas para fora do quarto, para a cidade sempre agitada que nem sequer imaginava que nós dois existíamos e nos amávamos naquele quarto de hotel a que já nos tínhamos habituado. Gosto de olhar-te assim pela manhã. Acompanhar os primeiros raios de sol assomando nas frinchas mais altas da persiana. Como são lentos esses farrapos de luz. Tantos quilómetros por segundo e tanta lentidão. Estou certo de que a luz admira o teu corpo tanto quanto eu o admiro e é por isso que nega a sua natureza e se torna lenta, percorrendo com mansidão cada centímetro da tua pele. Tantos mil quilómetros por segundo e a luz parando ali como se não houvesse tempo. E também eu fico preso na mesma teia, cúmplice do sol matinal, enredado na teia que ele estende como um véu que a pouco e pouco te vai cobrindo. A quantos quilómetros por segundo chega o orgasmo? Não falo do seu anúncio, que esse manifesta-se em sinais claros e que aprendi a ler. Aprendi o significado de cada contracção do teu rosto, do caminho que as tuas mãos percorrem, quando abandonam o meu corpo e se concentram no teu. Indícios tão claros como os alvores rosáceos pressagiando um dia de calor. Pressinto o teu orgasmo antes que tu o traduzas em palavras ou em gemidos. Talvez de tanto te amar o pressinta mesmo antes de ti. Mas do que falo não é desse caminho que o orgasmo faz das entranhas para a alma. Do modo como vem desde um lugar fundo, de um subterrâneo aberto desde a raiz do próprio tempo, deste nosso tempo de homens que a luz atravessa a trezentos mil quilómetros por segundo. Falo de outra coisa. Falo da velocidade com que ele te abala o corpo, de como te percorre toda inteira: inteiriça como um animal mergulhado no prazer e no vício. Bem sei que ele dura depois nas suas consequências, se prolonga em espasmos e convulsões, deliciosos efeitos secundários. Mas ou não há um momento preciso, exacto, condensado numa tensão de um nanosegundo? Espécie de flash viajando a quinhentos mil quilómetros por segundo, negando na sua exuberância as próprias leis da física. Falei-te nisso e tu riste como só tu sabes rir. E eu ri-me contigo, e rebolamos juntos na cama desfeita, os lençóis enrodilhados deixando ver o colchão azul, enorme e quadrado que não conhecia norte nem sul. Colchão-arena, tapete voador dos amantes, corpo-delito a que sempre voltávamos com a complacência do gerente. Hotel Dublin, local de eternas núpcias, achava eu antes mesmo de te perder para outros abraços.






A última vez que entrelaçamos os dedos. A derradeira carícia que se imprimiu em mim de forma tão profunda que ainda hoje sinto, dedo a dedo, a tua mão entre as minhas. Fiz batota, acho que fiz batota. Só eu sabia que aquela seria a despedida e pude, por isso, guardar para mim o teu calor. Que sentirás tu hoje, tantos anos passados? Serei na tua memória um esquecimento? Não sei sequer se o teu ódio por mim foi uma ferida purulenta ou uma mazela sem importância. Sobreviverei em ti como uma cicatriz? As vezes que voltei ao Hotel Dublin carregando comigo estas folhas em que escrevo como se te levasse comigo, como se tivesse sido possível ter-te transformado em palavras. O amor está na cabeça e nas palavras que dizemos. Se isto fosse uma carta, se acaso o pudesse ser, perguntar-te-ia se ainda te lembras de como acreditávamos nesta ideia tão simples e de como buscávamos palavras novas e nos enternecíamos e surpreendíamos nelas. Era um jogo, bem sei, mas não percebi que o devíamos ter guardado só para nós. Ah, a minha alma de artista apenas se alimenta do universal! Como podia eu sufocar de amor e deixar-te sufocar a ti se o mundo inteiro me esperava e te esperava. E todavia, quanto eu não daria para te ver interpretar uma peça minha. Esse prazer simples das minhas palavras na tua boca. As minhas palavras misturadas com a tua saliva, formando-se no profundo erotismo de lábios, língua e dentes movendo-se na tua boca. Teria bastado mas quem o podia saber naqueles vagos anos de entusiasmo e presunção. E depois surgiu ele. Mentira: sempre esteve ali, na sombra, esperando o momento. Janus, face luminosa de amizade disponível escondendo a outra, a paciente face do caçador que espera a fragilidade da vítima para sobre ela se abater. Estou a ser injusto? Descobriste nele qual das faces? Pode ele iluminar-te como eu te iluminei? Antes te sufocou de tal forma que nem esse sufoco imenso percebes. E no entanto devias percebê-lo. Logo tu, a mais certeira das apostas do Rock! Sobraram uns quantos cartazes desbotando entristecidos no seu gabinete-quarto-sala de exposições-antro de visitas-caverna de assombrações e de fantasmas. «Rock Hotel! Fantasmotel! Não perca, entre no Rock e sufoque!».

1 comentário:

Anónimo disse...

Pré-publicação?! Para quando uma publicação´com todas estas pequenas maravilhas? ;)