quinta-feira, 20 de março de 2008

O golpe

Julian Freud


Era um objecto pesado e frio, anguloso no seu vidro fosco raiado a azul. Os quatro rasgões na sua superfície tinham marcas já antigas e irremovíveis dos incontáveis cigarros que neles tinham repousado. Na base, imperceptível a um primeiro olhar, o cinzeiro apresentava uma mossa, como que um quinto rasgão, mas este irregular, sem forma definida. Vestígio de uma pancada ou queda que deixara o vidro esfacelado e cortante naquele ponto exacto.
O cinzeiro estava vazio e limpo, quase brilhando na débil luz daquele começo de manhã. Ele estendeu a mão e como se quisesse tomar-lhe o peso faz balouçar o braço direito, sentindo o vidro polido na aspereza da mão aberta. Encolheu o dedo indicador e fê-lo coincidir com o oco, sentindo aquela textura irregular em contraste com a restante superfície, que era lisa e tão polida que chegava a colar-se à sua pele quente e um pouco húmida. O oco parecia feito à medida. O seu dedo assentava naquele buraco de forma tão perfeita que parecia ter sido feito exactamente para esse efeito. Como se fosse um gatilho.
Mantendo o objecto preso entre os dedos, o homem fechou os olhos. Os lábios finos, sombreados pela barba que despontava forte, esboçaram um trejeito de sorriso. Apenas uma insinuação de felicidade, como se a sua mente tivesse sido despertada por um desejo ou uma memória. Imaginou que fora um crime hediondo e desnecessário que provocara aquela mossa no cinzeiro. Fez um esforço para visualizar o objecto manchando de sangue o chão da cozinha e imaginou-se a si mesmo agoniado, incapaz de despegar os olhos da sombra vermelha, que escorria lentamente, arrastando consigo uma mecha de cabelos loiros.
Quando voltou a abrir os olhos, o homem ergueu o cinzeiro e apontou-o ao sol que despontava no horizonte distante. Fez com que o reflexo brilhasse na parede e depois, recordando uma brincadeira que fizera muitas vezes enquanto criança, moveu aquele clarão com rapidez ao longo da parede vazia.
Levantou-se depois desajeitadamente, como se exagerasse a dificuldade desse acto tão simples. Cambaleou um pouco às primeiras passadas e acabou por tropeçar numa garrafa vazia que se escondia entre vagas peças de roupa que se espalhavam no percurso. Quando recuperou o equilíbrio dirigiu-se à cozinha, sempre agarrando o cinzeiro na mão tensa. A mulher estava encostada ao lava-loiças como se tencionasse servir-se dele, mas sem fazer qualquer movimento. Os braços nus pendiam-lhe molemente, enquanto os dedos da mão esquerda se entretinham com as pregas da toalha em que se enrolara. A cabeça estava baixa, deixando ver a nuca magra e ossuda, e os cabelos loiros caiam-lhe nos ombros numa simetria quase perfeita. Ela percebeu que o homem se aproximava mas não se virou. Foi então que sentiu a pancada seca e certeira que a matou. A segunda pancada que se ouviu naquela manhã foi a do cinzeiro caindo no chão da cozinha. Estava manchado se sangue e na mossa irregular onde o homem descansara o dedo estava agora um coágulo acinzentado a que se agarrara ainda um punhado de finos cabelos loiros.

1 comentário:

Unknown disse...

Bem, mais um casamento feliz!!! O gajo passou-se, fartou-se, mas por sim por não mais vale acabar com a vida de outrem do que com a sua, mesmo que miserável...a gaja tb só devia lavar, cozinhar e moer o juízo! Agora lá vai ele fumar mais um cigarro deixar amontoar o lixo e a desarrumação por uns dias até resolver sair de casa e ir entregar-se a esquadra mais próxima! Para onde será que vai parar agora o cinzeiro, hein? Uma vez q é arma do crime provavelmente vai ter um final infeliz depois de tanto uso vai acabar numa caixota de cartão...