quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Atrás do tempo tempo vem, ou de como a História não é assunto arrumado.

Parecia coisa condenada a morrer no canto de um dia banal. A finar-se, triste, no lugar das coisas inúteis e ultrapassadas. Afinal, os tempos não correm de feição a lamentos nem a descontentamentos estéreis. Já todo o bom cidadão teve tempo de perceber a seriedade da crise, o atoleiro em que nos encontramos metidos e de onde, a duras penas, nos tentam tirar. Pouco importa, para o caso, que, mutatis mutandis, sejam os mesmos “artistas” que para lá nos empurraram quem agora nos atira à salvífica corda que nos resgatará.
Saiu do canto a que o bem senso a condenara e encheu o dia. Claro que nisto há o eterno problema das medidas. Basta ver os jornais: muitos fizeram questão que o dia brilhasse como era previsto, concentrando as atenções na promessa de assinatura de um tratado europeu nascido a desoras. Mas de que falo eu afinal? Que coisa foi esse que venceu a triste sina de nascer e morrer no canto sombrio do dia de ontem? Falo da manifestação, claro. Pouco me importa que tenha sido convocada pela CGTP e que a ela se colem rótulos conhecidos e, se calhar, merecidos. Juntou duzentas mil pessoas e isso não é coisa pouca. É ainda mais significativo quando a ideia da inutilidade do descontentamento se tornou tão evidente. Algo que nos é ensinado todos os dias, como a lição maior da cartilha que devemos seguir fielmente.
Duzentas mil pessoas atravessando Lisboa em protesto, tem, por força, algum significado. É fácil sugerir um momento de viragem, assegurar que os tempos estão maduros para a afirmação de uma alternativa… Existisse ela por aí, convincente e consistente, e haveria, por certo, quem a seguisse e lhe desse forma. Não é assim. Até mesmo as alternativas possíveis parecem ter sido engolidas pela sombra dos dias. Que significado podemos, então, atribuir à manifestação de quinta-feira? Na verdade ela só ganha sentido se a entendermos como um sinal a que se juntam outros. O descontentamento que vemos nas escolas e nos centros de saúde, o desconsolo de quem não encontra emprego por mais que procure, o desespero de quem não consegue nunca que o dinheiro chegue ao fim do mês. Ora, dir-me-ão, sinais de uma crise que nunca ninguém negou, que vem detrás, que é culpa dos “outros”, daqueles que fizeram tudo mal e nos deixaram a nós a pesada responsabilidade de pôr o país no rumo certo. Parece bem certa esta objecção. Nem descontentamento, nem desconsolo ou desespero parecem suficientes para sair da amarga sombra onde os arrumamos e virem tomar conta do dia. Falta-lhes, certamente, o tempero final, mas quem nos governa até esse tempero se encarregou de pôr a uso. É a raiva o tempero final. Gera-a a impotência perante o “fatalismo” de sermos o país da Europa com o maior fosso entre ricos e pobres. É filha, também, da ignorância contente das elites, que pavoneiam em capas de revista o ridículo jet set que as anima, enquanto se alimentam de benesses, trafulhices & habilidades.
Tanta conversa por uma manifestação, há-de haver quem diga. Nada se acrescentou ou se perdeu a partir dela. O mundo continua a girar, empurrado pela miséria de uns e pelo sucesso de outros. Os dias continuam brilhantes por culpa de um verão infindável, ainda que sombrios para cada vez mais pessoas. Longe de quem convocou a manifestação e também de quem a contestou, vejo nela um sinal. A recusa da inteligência, a sua substituição pelas “coisas práticas”, marca cada vez mais os nossos dias. Esforçaram-se para que acreditássemos que já tudo tinha sido dito acerca do modo como os homens vivem e querem viver. A história tinha acabado. A página final fora virada e ante os nossos olhos pacificados estendia-se a derradeira ilustração do livro: democracias consolidadas, fazendo vigorar o mais estrito principio da (aparente) alternância; liberalismo económico à la carte e reformismo social q.b., indispensável à ideia de dinamismo e modernização. A manifestação de ontem não tem mais importância que a de um sinal. Vale a pena, por isso, sublinhar o modo como saiu da sombra para vir “assombrar” o tranquilo quotidiano dos que acreditam que a história chegou ao fim. Há sempre caminhos que se abrem. Importante mesmo é saber ler os sinais.

Sem comentários: